sábado, 14 de novembro de 2020

Uma amizade fecunda: Gustavo Corção e Raquel de Queiroz [João do Sul]

 João do Sul


No escoar de sua profícua vida Gustavo Corção granjeou inúmeras amizades, algumas delas se desvaneceram é verdade [pense-se em Alceu e Sobral Pinto – que foram para o outro lado], no entanto, algumas perduraram e foram muito fecundas, muito familiares.

No seleto time de bons amigos destacam-se, entre outros, Fábio Alves Ribeiro, o culto Alfredo Lage, o bom monge D. Marcos Barbosa e a doce romancista Raquel de Queiroz. 

Sobre a amizade o próprio Corção escreveu linhas de raríssima sensibilidade:

 

Todo amigo é amigo de infância. Não importa se você o conheceu no mês passado ou se soltou papagaio com ele na Rua do Matoso. Se a amizade é verdadeira, ela tem esta força que vence as distâncias e os anos, e tem necessidade de uma profunda comunhão de vida. O amigo não quer o amigo apenas no momento que passa, não se contenta com encontros e trocas fortuitas; o amigo quer o amigo em todas as suas dimensões, quer conhecer suas raízes e apreciar seus frutos. O amigo quer o amigo como companheiro de caminhar neste mundo. E por isso, a primeira ideia que nos acode quando pensamos na perfeição da amizade é a da fidelidade.

 

Alfredo Lage e Fábio Alves Ribeiro acompanharam Corção no tempo do Centro Dom Vital. Os três eram entusiastas do autor de “Humanismo Integral”, o filósofo francês Jaques Maritain. Tempos depois, quase beirando a década de setenta um estranho sentimento de terem sido ludibriados os tomou de assalto. É provável que Fábio tenha sido o primeiro a se dar conta do engodo, e os motivos para tal suspeita deixo para outra oportunidade.

O Lage, como era conhecido, em 1971 escreveu um livro de grande magnitude denunciando uma série de embustes então em voga, inclusive o maritanismo. O livro chama-se “A recusa de ser: falência do pensamento liberal” e já na introdução o autor afirma que o pensamento liberal “tem por conteúdo um falso ideal religioso inculcado mediante a repetição obsessiva de certos temas, ou antes, mitos do nosso tempo: o Progresso necessário, a Bondade originária, o Sentido da história, a Democracia igualitária, a Vontade Geral, etc., cuja análise revela um denominador comum: a recusa de fato das condições objetivas do desenvolvimento humano”. O liberalismo – acrescenta - é a “afirmação utópica do humanismo”. Trata ainda - com muita propriedade - da “traição dos clérigos”, do “burocratismo da CNBB”, da “permissividade dos novos padres” e da “Igreja em estado de calamidade”.

Em 1973 Corção lança “O Século do Nada”, que em vários pontos se assemelha ao livro do Lage, principalmente no que toca ao maritanismo e ao processo de defecção da fé agudizado após o Concílio Vaticano II.

Para o desprazer do pobre leitor – se é que ele existe – tenho que dizer que tudo o que foi escrito até aqui é de pouca importância. A menção ao livro “O Século do Nada” serviu na verdade para falar de Rachel de Queiroz. O leitor intrigado já não entende mais nada e sente-se tentado a parar por aqui. Pensa ele: que relação poderia existir entre “O Século do Nada” e Raquel de Queiroz, afinal essa senhora, se bem que grande escritora, sequer professava a fé católica. E nisso assiste razão ao distinto e atento leitor: que o bom Deus se amerceie da pobre alma da terna Raquel, quem, inclusive, confessou em uma entrevista que a maior tristeza de sua vida foi justamente a ausência de fé.

A lhaneza costumeira com que Raquel se referia a Corção bem revela a cândida amizade que ostentavam. Em 1973, por exemplo, quando Corção – pela obra “O Século do Nada” - foi agraciado (na categoria “Ensaio”) com o Prêmio de Literatura para Conjunto de Obra, no VIII Encontro Nacional de Escritores, em artigo estampado na revista O Cruzeiro assim se manifestou em relação à premiação e ao escritor premiado:

 

por fim mas não por último! – veio coroar o livro mais importante do ano, “O Século do Nada”, do filósofo, pensador, romancista, herói, guerreiro e santo – o nunca assaz louvado e querido Gustavo Corção.

 

E na sequência cita o próprio Corção:

 

E vale lembrar aqui o comentário feito pelo maior premiado [Corção], no seu depoimento: “As esquerdas internacionais bradam aos céus contra o ‘terror cultural’ reinante no Brasil. Mas é no Brasil que se prestam essas homenagens e aos escritores; enquanto na pátria de todas as esquerdas, a URSS, o lugar do escritor é no campo de concentração e no hospício de doidos...”

 

O leitor bem sabe que em “O Século do Nada” Corção faz uma aguda análise sobre o que considera o fenômeno mais grave dos últimos vinte séculos: “a infiltração das esquerdas no mundo católico” e o surgimento da “nova Igreja” ou “A Outra”, como ele a denominou.

Chamada pelo jornal Diário de Notícias a dar uma declaração sobre a mencionada obra, Raquel comparou Corção a Dom Quixote:

 

É um novo Cavaleiro da Mancha. Corção é um justo – no sentido evangélico da expressão – em que a paixão do bem e da verdade é servida por uma altíssima inteligência e pôs essa alma e inteligência a serviço da fé, reconquistada ‘com desapoderado amor, com dedicação total, com o interesse exclusivo do seu coração exigente’.

Quando veio a hora da guerra ele se armou cavaleiro e saiu combatendo. E talvez alguém pense, vendo-o lutar quase só contra moinhos de ventos tão grandes e de tão longos braços, que ele tem muito de Quixote. Talvez – Quixote na generosidade de doar-se, na paixão de servir à causa dos seus anjos, na indiferença às ameaças da força. Mas com uma diferença essencial: o cavaleiro Corção é um dos mais lúcidos santo combatente que Deus já enviou em missão a este mundo.

 

Quanta verdade há nas palavras de Raquel de Queiroz. Assim como o admirável Arcebispo Marcel Lefébvre, a quem tanto admirava, Corção envidou todos os esforços para defender a fé contra todos os que a queriam conspurcar.

Para finalizar, é também da autora de “O Quinze” o seguinte excerto estampado em uma nova edição do livro “Conversa em sol menor”

 

A maioria dos brasileiros conhece duas faces de Gustavo Corção.

Uma, a do escritor exímio, a usar como ninguém a língua portuguesa, o autor que, vivo ainda, graças a Deus, é um indiscutível clássico da literatura nacional.

A segunda face é a do anjo combatente, de gládio na mão, a castigar os impostores que vivem a gritar o nome de Deus e da sua Igreja, não para os louvar, antes para os apregoar na feita inocente-útil do 'progressismo'.

Mas há uma terceira face de Gustavo Corção, e essa só a conhecem aqueles que receberam a graça do seu convívio e da sua afeição: é a ternura do amigo, a extrema solicitude na amizade, aquela caridade do coração que é a coroa de todos os afetos.

 

Não sei se o leitor observou, mas nada falei do monge poeta D. Marcos Barbosa. Fica para a próxima.

 

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