João do Sul
No escoar de sua
profícua vida Gustavo Corção granjeou
inúmeras amizades, algumas delas se desvaneceram é verdade [pense-se em Alceu
e Sobral
Pinto – que foram para o outro lado], no entanto, algumas perduraram e
foram muito fecundas, muito familiares.
No seleto time de bons amigos destacam-se, entre outros, Fábio
Alves Ribeiro, o culto Alfredo Lage,
o bom monge D. Marcos Barbosa e a
doce romancista Raquel de Queiroz.
Sobre a amizade o
próprio Corção escreveu linhas de raríssima sensibilidade:
Todo amigo é amigo de
infância. Não importa se você o conheceu no mês passado ou se soltou papagaio
com ele na Rua do Matoso. Se a amizade é verdadeira, ela tem esta força que
vence as distâncias e os anos, e tem necessidade de uma profunda comunhão de
vida. O amigo não quer o amigo apenas no momento que passa, não se contenta com
encontros e trocas fortuitas; o amigo quer o amigo em todas as suas dimensões,
quer conhecer suas raízes e apreciar seus frutos. O amigo quer o amigo como
companheiro de caminhar neste mundo. E por isso, a primeira ideia que nos acode
quando pensamos na perfeição da amizade é a da fidelidade.
Alfredo Lage e Fábio
Alves Ribeiro acompanharam Corção no tempo do Centro Dom Vital. Os três eram
entusiastas do autor de “Humanismo Integral”, o filósofo
francês Jaques Maritain. Tempos depois, quase beirando a década de setenta um
estranho sentimento de terem sido ludibriados os tomou de assalto. É provável
que Fábio tenha sido o primeiro a se dar conta do engodo, e os motivos para tal
suspeita deixo para outra oportunidade.
O Lage, como era
conhecido, em 1971 escreveu um livro de grande magnitude denunciando uma série
de embustes então em voga, inclusive o maritanismo. O livro chama-se “A recusa de ser: falência do pensamento liberal”
e já na introdução o autor afirma que o pensamento liberal “tem
por conteúdo um falso ideal religioso inculcado mediante a repetição obsessiva
de certos temas, ou antes, mitos do nosso tempo: o Progresso necessário, a
Bondade originária, o Sentido da história, a Democracia igualitária, a Vontade
Geral, etc., cuja análise revela um denominador comum: a recusa de fato das
condições objetivas do desenvolvimento humano”. O liberalismo –
acrescenta - é a “afirmação utópica do humanismo”.
Trata ainda - com muita propriedade - da “traição dos clérigos”, do “burocratismo
da CNBB”, da “permissividade
dos novos padres” e da “Igreja
em estado de calamidade”.
Em 1973 Corção lança “O
Século do Nada”, que em vários pontos se assemelha ao livro do Lage,
principalmente no que toca ao maritanismo e ao processo de defecção da fé
agudizado após o Concílio Vaticano II.
Para o desprazer do
pobre leitor – se é que ele existe – tenho que dizer que tudo o que foi escrito
até aqui é de pouca importância. A menção ao livro “O Século do Nada” serviu na verdade para falar de Rachel de Queiroz. O leitor intrigado
já não entende mais nada e sente-se tentado a parar por aqui. Pensa ele: que
relação poderia existir entre “O Século
do Nada” e Raquel de Queiroz, afinal essa senhora, se bem que grande escritora,
sequer professava a fé católica. E nisso assiste razão ao distinto e atento
leitor: que o bom Deus se amerceie da pobre alma da terna Raquel, quem,
inclusive, confessou em uma entrevista que a maior tristeza de sua vida foi justamente
a ausência de fé.
A lhaneza costumeira
com que Raquel se referia a Corção bem revela a cândida amizade que ostentavam.
Em 1973, por exemplo, quando Corção – pela obra “O Século do Nada” - foi agraciado (na categoria “Ensaio”) com o Prêmio de Literatura para
Conjunto de Obra, no VIII Encontro Nacional de Escritores, em artigo estampado
na revista O Cruzeiro assim se
manifestou em relação à premiação e ao escritor premiado:
por fim mas não por último! – veio coroar o livro mais
importante do ano, “O Século do Nada”, do filósofo, pensador, romancista,
herói, guerreiro e santo – o nunca assaz louvado e querido Gustavo Corção.
E na sequência cita o
próprio Corção:
E vale lembrar aqui o comentário feito pelo maior premiado
[Corção], no seu depoimento: “As esquerdas internacionais bradam aos céus
contra o ‘terror cultural’ reinante no Brasil. Mas é no Brasil que se prestam
essas homenagens e aos escritores; enquanto na pátria de todas as esquerdas, a
URSS, o lugar do escritor é no campo de concentração e no hospício de doidos...”
O leitor bem sabe que
em “O Século do Nada” Corção faz uma
aguda análise sobre o que considera o fenômeno mais grave dos últimos vinte
séculos: “a infiltração das esquerdas no
mundo católico” e o surgimento da “nova Igreja” ou “A
Outra”, como ele a denominou.
Chamada pelo jornal Diário de Notícias a dar uma declaração
sobre a mencionada obra, Raquel comparou Corção a Dom Quixote:
É um novo Cavaleiro da Mancha. Corção é um justo – no
sentido evangélico da expressão – em que a paixão do bem e da verdade é servida
por uma altíssima inteligência e pôs essa alma e inteligência a serviço da fé,
reconquistada ‘com desapoderado amor, com dedicação total, com o interesse
exclusivo do seu coração exigente’.
Quando veio a hora da guerra ele se armou cavaleiro e saiu
combatendo. E talvez alguém pense, vendo-o lutar quase só contra moinhos de
ventos tão grandes e de tão longos braços, que ele tem muito de Quixote. Talvez
– Quixote na generosidade de doar-se, na paixão de servir à causa dos seus
anjos, na indiferença às ameaças da força. Mas com uma diferença essencial: o
cavaleiro Corção é um dos mais lúcidos santo combatente que Deus já enviou em
missão a este mundo.
Quanta verdade há nas
palavras de Raquel de Queiroz. Assim como o admirável Arcebispo Marcel Lefébvre, a quem tanto admirava, Corção envidou
todos os esforços para defender a fé contra todos os que a queriam conspurcar.
Para finalizar, é
também da autora de “O Quinze” o
seguinte excerto estampado em uma nova edição do livro “Conversa em sol menor”
A maioria dos brasileiros conhece duas faces de Gustavo
Corção.
Uma, a do escritor exímio, a usar como ninguém a língua
portuguesa, o autor que, vivo ainda, graças a Deus, é um indiscutível clássico
da literatura nacional.
A segunda face é a do anjo combatente, de gládio na mão, a
castigar os impostores que vivem a gritar o nome de Deus e da sua Igreja, não
para os louvar, antes para os apregoar na feita inocente-útil do
'progressismo'.
Mas há uma terceira face de Gustavo Corção, e essa só a
conhecem aqueles que receberam a graça do seu convívio e da sua afeição: é a
ternura do amigo, a extrema solicitude na amizade, aquela caridade do coração
que é a coroa de todos os afetos.
Não sei se o leitor
observou, mas nada falei do monge poeta D. Marcos Barbosa. Fica para a próxima.
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