Fr. JOSÉ MARIA OLIVIER (1879).
I
Durante a idade média, os fiéis tinham
estabelecido o costume de levar flores à igreja todos os dias solenes, que,
benzidas pelos sacerdotes, as guardavam como uma recordação de cada festa. Este
formoso costume se perdeu, como tantos outros, e unicamente nas aldeias existe
ainda, e se oferecem flores ao Santíssimo Sacramento em suas festividades. O
sacerdote faz tocar as flores à Custodia, e as devolve aos que as tem
oferecido, como em memória da benção solene dispensada pelo Deus do tabernáculo
a seus fiéis devotos.
Este perdido costume tinha, como tantos
outros, sua razão misteriosa.
Em todos os povos as flores representam um
símbolo de júbilo; parece que o mesmo Deus há inspirado aos homens a ideia de
associá-las a todas as suas alegrias.
Na florida primavera, quando a terra celebra
seu rejuvenescimento, as flores são o sinal patente da vitória obtida pela vida
sobre a morte; e o mais completo triunfo da estação alegre, risonha, fecunda,
sobre o estéril e sombrio inverno.
O homem nisto faz como Deus: semeia de flores
o caminho em que se equilibram a juventude, a alegria, a força e a esperança.
Canta seus prazeres e seus triunfos coroando-se de flores, e para demonstrar
que a morte é apenas um transito, uma passagem para uma vida melhor, adorna
também com flores seu sepulcro.
II
Porem a flor preferida por excelência para demonstrações
de júbilo; a que levamos ás nossas igrejas dominicanas o benzemos nas grandes
festas, é a rosa.
É, com efeito, a flor que representa melhor a
juventude e retrata a esperança. Ao desaparecer as últimas neves, quando se
aproxima a primavera, se veem à sombra das silveiras algumas desbotadas e
melancólicas flores, com pouco perfume, débil amostra de uma vida incompleta
ainda. Porém quando o céu e inteiramente azul, os raios do sol mais fortes, a
brisa mais branda, a terra mais louça, a rosa aparece como o símbolo da
juventude em toda a sua beleza.
É, pois, a rosa a flor que com preferência
devemos escolher para associá-la às nossas festas religiosas; a estas festas
que são sempre novas e como que o prelúdio dos gozos sem fim, eternos, a que
aspiramos. Porém nós os filhos da Virgem do Rosário temos uma razão mais
poderosa ainda para escolher a rosa como sinal de alegria, e é porque esta flor
é a das virgens e a dos mártires.
III
É a flor das virgens. Efetivamente: nada no
mundo representa tão bem a candura e a inocência como a rosa, adornada com a
sua pureza imaculada, protegida por seus espinhos, e espargindo em torno seu
doce perfume.
Bela sempre durante sua vida fugaz, o é ainda
mais com sua aurora, quando velada pelas tenras folhas que parecem servir-lhe
de berço, abre pundonorosa a corola virginal, deixando apenas penetrar, e como
purificá-la, um só raio de sol. Mais tarde, virgem ainda, quando descobre com
sentimento os atrativos de seu coração, a candura da infância e da adolescência,
é o momento em que todos os olhares se fixam nela, a mão não se atreve a
aproximar-se demasiado com o receio de ofende-la. É o instante em que se
engrazam em sua corola as pérolas do orvalho menos puras e transparentes que
suas pétalas: a luz se concentra nela fazendo-a brilhar com mais força e exalar
mais suaves perfumes. Com sua casta alvura, ou com o ligeiro carmim que lhe dá
seu nome, é e será sempre a flor das virgens, a flor com que se cinge a fronte
das meninas em sua primeira comunhão, a que coroa o branco ataúde das donzelas,
e a flor com que adornaríamos o berço dos infantes se eles não fossem tão puros
como as mesmas rosas. A rosa se vê cercada de espinhos; claríssimo exemplo que
nos ensina o grande cuidado que devemos ter em guardar nossa pureza. A mão que
imprudente vá colher a casta flor, à impressão dos espinhos se retira ensanguentada.
De igual modo devemos opor a essas mãos imprudentes, cujo contato entibia e desfolha
as flores da alma, os inteligentes espinhos da vigilância e firmeza cristãs.
Tácito, falando das mulheres germanas, dizia que
sua pureza as guardava como um valado de espinhos: circunscripta pudicitia ricunt. Assim devem viver as almas que Deus
há querido que guardem a inocência. Se o áspide venenoso, ou o golpe indiscreto
não opõe obstáculo para tocar a pobre flor, prestes se encontrará esta desfalecida,
e para ela o desfalecimento é a morte. Nos admiramos algumas vezes da
assombrosa rapidez com quo vemos cair do pedestal da inocência pessoas que
antes admirávamos; porém ai! não devem estranhar estas súbitas quedas: a rosa
não tinha espinhos !
Assim é muito fácil colhe-la, e por isso se
acha bem depressa desfolhada.
IV
A rosa não é somente a flor das virgens, mas
igualmente a dos mártires.
Segundo diz a Santa Escritura, a vida do homem
é um continuo combate sobre a terra, no qual não se alcança o prêmio sem haver
antes conseguido a vitória. É esta vitória, conquistada às vezes sobre o
cadafalso, outras em um perseverante trabalho que tem por duração toda a vida;
é sempre uma vitória alcançada à custa de inauditos sacrifícios, que nos faz
comprimir de um modo doloroso nosso coração, contrariar nossa vontade e mortificar
o espírito, tudo para obter o prêmio desejado. E as lágrimas que se derramam, são
lágrimas de sangue que tingem as rosas da inocência não perdida ainda, ou antes
reconquistada.
Quando a virgem Santa Cecília mostrou a seu
esposo Valério as coroas que o céu lhes tinha preparadas, este viu umas
grinaldas formadas de rosas brancas e encarnadas descer sobre suas cabeças. A Igreja
pratica este exemplo coroando com rosas encarnadas as frontes de seus santos
prediletos e de seus mártires, que representam o laurel da vitória. O laurel murcha
o prestes se consome no fogo, porém a rosa conserva sempre um resto da sua cor
e de seu perfume primitivos.
Do mesmo modo Deus concede a seus mártires
esta segunda vida, se lhe são agradáveis as flores que se lhe oferecem, e estas
flores, que representam a vida e a juventude, jamais murcharão, guardando
eternamente purpura que as tinge do sangue por eles derramado, por amor a seu
Salvador.
V
A rosa é a flor que mais convém a nossas
festas, pois a maior parte delas estão destinadas a Maria, a Rainha das Virgens
e dos Mártires. A Santa Escritura dá à Virgem um título que a Igreja o conserva
na Litania e é o de Rosa Mística. Maria é a mais bela flor do
Carmelo, cujas imemoráveis flores embalsamam o monte sagrado, subindo seus
perfumes qual ligeira nuvem até o céu, e deixando absortos os olhos do Profeta.
É também Maria a Rosa de Jericó, a maravilhosa flor que depois de morta torna a
renascer com suas mais belas cores e perfumes, submergindo somente a haste na
água cristalina.
Porém se a rosa é a principal flor de todas
as festas de Maria, é em particular a mais adequada para as festas do Rosário. Efetivamente
nenhuma outra poderia recordar-nos melhor os gozos tão puros, as acerbas dores
e o triunfo gloriosíssimo da Santíssima Virgem. Quem mais pura que Maria, e
onde melhor que nos mistérios de gozo podemos apropriar a rosa branca? Quem
padeceu tanto como ela, e onde pôde convir melhor a sangrenta rosa que nos mistérios
dolorosos? Quem ao presente tem mais gloria, e a quem senão à Maria oferecemos
com todo o respeito e júbilo de nosso coração as enlaçadas flores dos mistérios
gloriosos? É muito justo que levemos flores ao pé do altar, e que o sacerdote
as abençoe.
Em nossas mãos são elas o patente testemunho
do culto que tributamos à Maria, e guardadas em nossas casas serão o laço de
união contraindo com tão boa Mãe, que nos cumulará de graças e bênçãos.
VI
Estas flores
murcharão também como todas as da terra, mas sempre teremos presente o espirito
de perseverança e de sacrifício que tão perfeitamente nos ensinaram, e o candor
e a prudência com que se adornaram.
A fragilidade da rosa nos recordará aquelas almas agradáveis um
dia aos olhos de Deus, quando estavam perfumadas pela candura da inocência,
porém, que, sem saber como, arrojaram ao furor dos ventos as flores de sua
coroa.
A só lembrança da flor do Rosário rogaremos com
fervor à Maria se compadeça das almas, que hão perdido ou deixado enfraquecer
sua força, e também por aquelas que ainda a conservam, afim de que Maria as mantenha
em sua primeira inocência.
Nos dias de tribulação e angustia, quando
vejamos murchar umas após outras as flores de alegria e de esperança com que se
via adornada nossa juventude, pensaremos nas rosas que, despojadas pelos
rigores do inverno, em chegando a primavera tornam a florescer se depõe a
semente, e assim rogaremos à Maria derrame em nosso coração a seiva
sobrenatural, esta graça vivificante que fará florescer nossa alma contristada
pelos males da terra, porém que pela vitória alcançada nos será dado o gozar
eternamente a gloria celestial.