Por Gustavo Corção,
publicado n’O Globo em 12-09-76
O MOSAICO de
testemunhos reunidos pelo Jornal do Brasil em torno de Dom Marcel Lefebvre tem
a originalidade de começar pelo depoimento de D. Avelar Brandão que assim
mereceu especial destaque. Ouvi-o com toda a atenção. Logo de início, em tom
grave de incontestável e ilibada autoridade, Dom Avelar Brandão nos diz: “é cedo para afirmar que a desobediência de
Dom Marcel Lefebvre já signifique de fato um cisma, é na verdade um sintoma
alarmante, um gesto incompreensível”. Pergunta D. Avelar Brandão: “Lefebvre é somente ele ou passou a ser um
instrumento de outros que nada têm a ver com a Igreja?”. Na sua opinião,
que Lefebvre possa ter amor ao latim e ao rito da missa anterior ao Concílio,
bem assim tendências pessoais de conservadorismo político, entende-se, mas que
suas convicções cheguem ao ponto de provocar uma rebelião, uma atitude formal
de rejeição da autoridade do papa já não se pode admitir.
A MIM, e certamente
aos milhares de católicos que leram essas entrevistas, o que certamente
parecerá mais difícil admitir e entender é a tranquilidade grave e pausada com
que fala em rebelião e desobediência à autoridade do Papa o mesmíssimo
personagem que três meses atrás, desobedecendo a mais de dois séculos e de não
sei quantos papas, empurrado certamente por forças e interesses contrários aos
da Igreja, participou de festividades maçônicas em Salvador. Para mais
escandalizar as consciências católicas, Dom Avelar Brandão fez questão de
mencionar na loja maçônica o nome do Papa Paulo VI; e fez questão de frisar as
boas relações que mantém com o Sumo Pontífice. Como se viu, a seguir, não houve
sinal nenhum de reprovação diante do escândalo, da desobediência, da ruptura
ostensiva do Cardeal Primaz do Brasil com toda a tradição católica.
UM OU DOIS ANOS ATRÁS
dificilmente poderia contar a indignação e o fluxo de objetivos e advérbios que
essa paixão da alma costuma produzir.
HOJE, com o preço de
muito estudo e muito sofrimento, creio ter compreendido melhor a largura, a
altura e a profundidade do fenômeno que tanto aflige a consciência católica e a
distância abismal que nos separa da “Igreja do homem que se faz Deus”. Hoje não
me sinto indignado e envergonhado com o desembaraço de Dom Avelar Brandão
diante da atitude de Dom Lefebvre. O quadro de valores em que Dom Avelar
Brandão se sente à vontade na loja maçônica, e ainda mais à vontade no J.B.
para criticar e qualificar severamente o apego de Dom Lefebvre à sua Igreja e à
sua obra, é decididamente diverso daquele em que se movem todos os católicos
que assistiam assustados ao desmoronamento da santa missa e das santas
intransigências da Igreja, e agora assistem com começo de alento sinais de
resistência católica, que por toda a parte surgem, e entre os quais Dom
Lefebvre se destacou pela grandeza de sua obra, e por que não? Pela grandeza de
sua figura de Bispo Católico que deve incomodar muita gente.
SIM, são diversos os
valores, os critérios, os sentimentos, os afetos, são diversas, para não dizer
opostas, a religião do Verbo Incarnado, e a nova religião do Humanismo que
tolera tudo, que tem aberturas para todas as aberrações de mentalidade
contemporânea, mas só não pode suportar o que ainda lhes venha lembrar a
religião dos santos, a religião de um Reino que não é deste mundo que
abandonaram.
Não há, portanto, o
que estranhar nas reações de Dom Avelar Brandão e de Dom Evaristo Arns, cuja
explicação é a mesma. O que eles dizem e fazem está na lógica da nova Igreja
que ostensivamente se separou da tradição católica, e, portanto, da Igreja de
Cristo.
NO DEPOIMENTO DE D.
EUGÊNIO SALES, as causas mais profundas da desobediência estão no orgulho.
Concordamos inteiramente com este enunciado de conhecidíssima verdade, mas
devemos lembrar que o amor-próprio, causa da raiz de todos os pecados, não é
causa somente dos atos de desobediência; está também na raiz dos que não
somente erram, mas perseveram no erro. E isto tanto pode ocorrer com o mais
obscuro dos fiéis, como com os Bispos que persistem em erros graves, e por que
não com o próprio Papa?
ESTAMOS POIS no
domínio das idéias gerais aplicáveis a todo o mundo, e não vejo como possa D.
Eugênio Sales, à distância, sondar os rins e os corações para saber que o caso
particular de Dom Lefebvre e de outros que lutem ardorosamente na defesa do
depósito sagrado se expliquem sempre pelo orgulho.
O QUE APRENDI com os
doutores da Igreja leva-me a concluir, sem hesitação, que os princípios do novo
humanismo propalados pelo Concílio são propagadores do orgulho, sob disfarce de
exaltação dos valores humanos. Toda nossa civilização está marcada por esse
veneno e a CNBB não faz outra coisa senão difundi-lo. Cabe aqui entretanto
observar que a principal e mais grave manifestação do orgulho não se observa de
homem para homem, ainda que um desses esteja investido de autoridade de direito
divino, por cujo uso ou abuso deverá responder, não perante o próximo ou a
História, como diz a Gaudium et Spes,
55, mas diante de Deus.
MAIS ADIANTE, no seu
depoimento, D. Eugênio Sales acrescenta, para procurar o meio termo do
problema: “Cabe reconhecer também que a culpa não recai somente em Dom
Lefebvre. Todos os que inovam abusivamente na liturgia, na disciplina e na doutrina, também ferem a
unidade da Igreja. São seguidores dos princípios que norteiam esse bispo,
embora em extremo campo oposto”.
SE O EMINENTÍSSIMO
CARDEAL Arcebispo do Rio de Janeiro me permite um modesto reparo a esta
simetria, eu diria que os inovadores que levam a Missa à sua destruição, como
no artigo da 5ª feira gritava o Pe. Auvray, não são desobedientes. São consequentes
com os princípios introduzidos pelos reformados conciliares. Quem melhor os
qualificou, a nosso ver, foi D. Ivo Lorscheider que, em entrevista concedida há
cerca de dois meses declarou que o Papa Paulo VI dirige a Igreja no seu caminho
para a frente, com serenidade, sem atender “à
estagnação dos conservadores nem à impaciência dos contestadores”.
ACHO MUITO FELIZ o
termo achado por D. Ivo: “Impacientes” para designar aqueles que não esperam o
sinal verde dos bispos ou conferências episcopais para se entregarem aos
comunistas, ou para receberem condecorações em lojas maçônicas. Dom Ivo parece
dizer-lhes: – Não sejais impacientes, que nós lá chegaremos. Porque a Igreja
não pode ficar amarrada, como disse D. Avelar Brandão. E aí está o princípio
esparso em toda a moderna civilização. O princípio que envenenou o Concílio. O
princípio que Dom Lefebvre recusa. A Igreja foi fundada sobre pedra e não sobre
rodas. E Jesus disse claramente: “Passarão
o céu e a terra, mas minhas palavras não passarão”.
E AGORA DR. ALCEU
AMOROSO LIMA, duas palavras. Agradavelmente surpreendido com a menção de meu
nome em suas colunas, e especialmente agradecido pelo interesse com que o Sr.
Vem acompanhando meu declínio, leio sua declaração: “Gustavo Corção, meu amigo durante vinte anos, que perdeu o estilo e o
humor”.
CONFESSO que o meu
primeiro impulso foi o de soltar a frase de Cyrano de Bergerac: “C’est un peu court jaune homme”.
A segunda tentação
foi a de procurar na página do J.B., ou alhures, quem terá encontrado as prendas
literárias que o escritor Gustavo Corção perdeu.
PENSANDO MELHOR,
achei nas declarações do doutor Alceu matéria de agradecimento, que é muito
mais abundante neste vale de lágrimas do que às vezes parece, quando
consentimos que a serpente do amor próprio nos dite a conduta e a palavra.
Obrigado Dr. Alceu, obrigado pela lembrança da amizade de vinte anos, e pela
bondade com que assinalou meu desgaste. Se em todo este inglório batalhar só
perdi o estilo e o humor, louvado seja Deus, porque em verdade, nunca me passou
pela idéia que todas essas tribulações devem ser suportadas para que na hora de
Deus tivesse o direito de clamar: – Combati o bom combate, guardei o estilo e o
humor.
Gustavo Corção
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