sábado, 20 de junho de 2020

O reino do céu é para gente valente e decidida (D. Antônio de Macedo Costa)


Excerto de magnífica Pastoral do Grande Bispo do Pará, impertérrito defensor dos interesses da santa religião em face das tramas abjetas da maçonaria e do regalismo, glória imortal do nosso Brasil, incontestavelmente um dos mais belos ornamentos do Episcopado das Américas.

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Julgas, ó cristão, que Jesus Cristo morreu por ti para dar-te o direito de viveres tranquilo no pecado? Julgas que ele derramou o seu sangue para que a teu salvo continuasses a crucifica-lo de novo com tuas culpas e a ofender a majestade infinita de seu Pai? É assim que entendes a Redenção? É esta liberdade funesta que Cristo trouxe ao mundo? De que nos remiu ele então? De que jugo nos libertou?
Se era para ficarmos escravos do demônio, sujeitos ao cativeiro infame das paixões, então foi inútil a sua morte, então foi derramado debalde o seu sangue. Como! Veio o Verbo de Deus, o filho eterno do Pai a este mundo, nasceu n’um presépio; sofreu pobrezas, fomes, desterros, trabalhos, perseguições, ciladas, desprezos; jejuou, orou, cansou-se, derramou suores e lágrimas, e por fim foi traído, vendido, preso, desamparado, cuspido, açoitado, condenado à morte como um vil criminoso e pregado no patíbulo da Cruz entre ladrões! Um Deus! O Criador do céu e da terra em tal lugar! Se um grande rei morresse enforcado entre dois vis escravos assassinos, o mundo inteiro ficaria assombrado de tanta humilhação. Aqui, porém, não é um rei; é o Deus eterno, onipotente, Senhor de todo o criado, que se abaixou à desonra de tão afrontosa morte! Um Deus, que morre, e morre na Cruz! Um Deus que nesse altar da Cruz, nu, palpitando, todo banhado em seu sangue, se oferece Vitima de propiciação pelos pecados dos homens, e que prolonga e continua todos os dias esse seu tremendo sacrifício sobre os altares da Igreja até o fim dos séculos. Um Deus que funda o augusto sacerdócio da nova Aliança, participação de seu eterno sacerdócio; que estabelece sacramentos adoráveis, e põe à nossa disposição graças superabundantes para vencermos o demônio, derrotarmos a própria carne, e vivermos na pureza, na justiça, na caridade, na paciência, na humildade, em uma palavra na prática das mais sublimes virtudes de que nos deu o exemplo.
E o que fazemos nós? Pecados e mais pecados, excessos e mais excessos, desordens e mais desordens. Venham os deleites, venham os carnavais, venham os teatros e as danças libidinosas, venham as farras e os bailes, venham os jogos devoradores da honra e da fortuna; venham as ambições desenfreadas, venham os tráficos usurários; venham as políticas dissimuladas de fraudes e malversações, venham as discórdias e os ódios sedentos de vingança, venham as maledicências e as calunias; venham as uniões imorais, as prostituições e adultérios; em uma palavra, venham a soberba, a impiedade, o sensualismo, o egoísmo, com todas as desordens da antiga gentilidade. E chama-se a tudo isto liberdade moderna, progresso, civilização!
Irmãos e Filhos muito amados, é possível que seja isto assim? Não, não, nosso batismo nos obriga a vida muito diferente; o fato da Encarnação e da Redenção nos empenha a proceder de um modo todo contrário a este século corrompido.
Oh! Caros Filhos, que o Deus da paz quebre quanto antes Satanás debaixo de vossos pés (Rom. XVI, 20) e vos encha da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo para combaterdes contra tudo o que se opõe à vossa salvação. O reino do céu não é para os esmorecidos, que deitam a mão ao arado e olham para trás (Luc. IX, 62); mas para a gente valente e decidida, para os que se fazem violência a si próprios, lutadores sublimes, que se estendem e de desconjuntam na arena para arrebatar mais depressa o prêmio almejado (Fil. III, 13): Violenti rapiunt illud (Mat. XI, 12).
Esforçai-vos: corrigi vossos defeitos, sobrepujai os ímpetos das paixões, removei as ocasiões de pecado, fazei frutos dignos de penitencia; ponde pela oração e pelos Sacramentos em vossas almas a verdadeira vida e a paz.
“Suplico-vos pela misericórdia de Deus, vos diremos com S. Paulo, que lhe ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a seus olhos, prestando-lhe um culto espiritual (acompanhado de boas obras, e não um culto só de aparências). E não vos conformeis ao século presente, mais reformai-vos, pelo renovamento do espírito, para seguirdes a vontade de Deus, grata a seus olhos e perfeita. Caridade sincera, sem dissimulação; tende horror ao mal, unindo-vos fortemente ao bem.
Nutra cada um para seu próximo um afeto e ternura verdadeiramente fraternal, dando-se mutuamente testemunhos de honra e de deferência.
Não sejais frouxos no cumprimento do dever; conservai-vos no fervor do espírito, lembrando-vos que servis ao Senhor.
Alegrai-vos na esperança dos bens eternos, pacientes nos males, perseverantes na oração, caridosos para aliviar as necessidades dos justos, prontos a exercer a hospitalidade.
Bendizei os que vos perseguem; bendizei-os e não lhes lancei imprecações; alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram; unidos todos nos mesmos sentimentos, condescendendo com os mais humildes. Não pagando mal com mal; mantendo, quanto for possível, a paz com todos; não vos vingando, meus irmãos, mas deixando a Deus esse cuidado, pois está escrito: A mim fica reservada a vingança, e a cada um darei o pago, diz o Senhor.
Pelo contrário, se vosso inimigo tiver fome, dai-lhe que comer; se tiver sede, dai-lhe que beber...” (Rom. XII e seg.)
Eis aqui a doutrina da nossa religião. Eis aqui o cristianismo, como a Santa Igreja Católica Romana no-lo ensina. Ah! Como a sociedade inteira se reformaria, se esta doutrina fosse por todos abraçada e posta em prática.
Se cada um se reformasse, e se tornasse um verdadeiro cristão, as famílias se reformariam também; uma verdadeira educação seria dada aos filhos; estes cresceriam em graça e sabedoria diante de Deus e diante dos homens; seriam depois cidadãos úteis e virtuosos, e assim ficaria por sua vez reformada a sociedade. Não é isto o que todos desejais? Mas como de vós mesmos nada podeis fazer, e necessitais dos auxílios da graça, recorrei com confiança neste mês de bênçãos ao trono da graça e da misericórdia, e certamente, pelos rogos e intercessão da Imaculada Virgem Maria Mãe de Deus, advogada dos pecadores e Padroeira desta diocese, alcançareis a misericórdia e achareis o oportuno socorro da graça em vossas necessidades. (Hebr. IV, 16)
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D. Antônio de Macedo Costa (1830-1891). Pastoral exortando a seus diocesanos por ocasião das manifestações afetuosas com que o receberam em sua volta à diocese, e oferecendo-lhes em sinal de agradecimento um opúsculo sobre os deveres da família (1876).

D. Antônio de Macedo Costa (1830-1891).


quinta-feira, 18 de junho de 2020

O quarto mandamento (Gustavo Corção)


Uma desordem total invadiu o nosso século. Em proporções gigantescas e com indomável força ela, dia a dia, conquista os núcleos básicos da comunidade humana.
A característica principal da forma moderna da desordem é a inversão dos valores do convívio humano, que começa cortando os laços que ligam os diversos escalões da hierarquia social e termina no desentendimento total dos homens.
Na família, os filhos estão surdos para o timbre da voz paterna. Os pais estupefatos temem os filhos. Temem principalmente perdê-los. Com cabisbaixa fraqueza cedem às suas imposições, para não perderem aqueles que de há muito perderam. Congrega-os o lar apenas por laços de um certo instinto gregário e os interesses monetários dos filhos. Mas o filho já é um estranho na casa.
Na escola, a professora condicionada por uma pedagogia que nega a tendência da criança para o mal (tendência que é um claro indício do pecado original) e o valor educativo das punições, docilmente cede a todos os caprichos infantis.
Nos ginásios, os adolescentes agrupados na promiscuidade da co-educação, iniciam-se nas “viagens do fumo” e dos tóxicos, preparam-se para o amor nas “inocentes” práticas sexuais, sob os olhares estimulantes e compreensivos dos orientadores educacionais.

Nas universidades, os representantes do mais tolo mito do século, o mito do JOVEM, elaboram os programas, impõem e depõem os mestres e dirigentes, sob o pastoral treinamento, nas universidades católicas, de sacerdotes mais imaturos que eles e que os orientam conforme a moral permissiva e a linha subversiva.

As nações, na desarvorada corrida para a tirânica democratização, já atingiram, ou estão prestes a atingir, o mais que perfeito regime da desordem institucionalizada de um Chile, de um Argentina ou dos ensaios brasileiros pré-64.

Entre os católicos o vírus do desconcerto infiltrou-se em proporções alarmantes. Os detentores do poder sagrado, por pusilanimidade, por irresponsabilidade, por comodidade, por estupidez, ou, o que é mais provável, por tudo isso junto, entregaram de mãos beijadas o governo às conferências episcopais, às comissões de peritos, que funcionam como imensas máquinas manipuladas pelos técnicos da pastoral. Um poder invisível, onipresente e onipotente, age como um rolo compressor, esmagando o doce e paterno cuidado dos pastores. Estes, submissos e silenciosos, no clima asfixiantes dos diálogos, assinam tudo o que os secretários das linhas pastorais 1, 2, 3, etc. lhes enviam para que livremente não deixem de aprovar. O resultado do funcionamento dessa burocracia eclesiástica é, além das estatísticas e das verbas astronômicas dispendidas, a orientação para uma vida cristã onde em moral vale tudo e, em doutrina, nada vale a verdade transmitida há dois mil anos.

O princípio norteador da Grande Revolução é a quebra da ordem pela destruição da hierarquia, da imagem do pai, do sacerdote e do príncipe.
 A subordinação livre e consciente do homem ao homem na família, na cidade e na religião, força propulsora da ordem e da paz, é uma continuação da subordinação ao Criador, ao Pai Eterno. Se tudo no Universo a Deus se subordina e a Ele se relaciona como ao Criador, desde as suas origens a criatura humana a Deus se liga como ao Pai. Porque Deus concedeu ao homem algo do seu próprio ser, da sua própria vida: a inteligência, pela qual penetra no mistério da essência das coisas; a graça, num plano mais alto, que permite ao homem pela fé, nesta vida, e pela visão, na outra, perscrutar as profundezas de Deus.

Deus é Pai porque gerando o homem pelo sêmen da graça fá-lo ser de um modo ainda mais pleno a sua imagem e semelhança. O nome que mais convém a Deus, enquanto fonte dessa vida divina em nós, é o de Pai. Pai que está sempre a nos lembrar as nossas humildes origens do nada e as nossas grandiosas origens no amor e na misericórdia divina; a nossa dependência, a nossa fraqueza.

Em piedoso reconhecimento dessa paternidade divina, que nos tirou do nada para o ser, de criatura, para filhos de Deus, na qual se encontra o sentido último de toda autoridade humana, exclama S. Paulo: “Eu dobro os meus joelhos diante do Pai, do qual toda paternidade no céu e na terra tira o seu nome”. (Ef., 3, 14).

A Grande Desordem que contemplamos, conseqüência natural da Grande Revolução que o “inimigo do homem” declarou contra o Filho do Homem nos tempos modernos, tem por força motriz a desobediência. Mas desobediência qualificada por um novo aspecto, pois quem promove agora a subversão é a própria autoridade, como que pressionada por um inevitável impulso suicida.

Os pais pelas atitudes de fraqueza, educam os filhos para a desobediência. Os governos tolerantes de um Frei, no Chile, de militares fracos, na Argentina, levaram essas duas nações à desordem total. Pela tática renúncia dos governantes ao poder, muitas outras nações caíram nas mãos da desordem organizada dos regimes marxistas. Quem entre os católicos fala oficialmente pregando a revolta do filho ao pai, do povo ao governo, não são os fiéis, são os próprios membros do corpo docente consagrados para ensinarem aos homens a piedade, a paciência, a submissão e a paz.

O processo revolucionário dirigido pelo “pai da mentira” contra o Pai Eterno só poderá ser detido pela contra revolução dos filhos de Deus que contemplam no superior a imagem do Pai. A mais terrível arma do “filho das trevas” contra o Pai das Luzes é ter conseguido arrancar dos corações o sentimento de piedade, de respeito e de amor aos pais. As palavras de S.Paulo dirigidas para a comunidade familiar, onde a ordem social encontra a sua fonte, poderão, com as devidas transposições, ser aplicadas a todas as esferas da sociedade dos homens. “Filhos, obedecei os vossos pais no Senhor, porque isso é justo. Pais, não exaspereis vossos filhos, mas educai-os na disciplina e na correção conforme o Senhor”. (Ef., 6. 1;4).
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Gustavo Corção. Editorial da Revista Permanência, no. 57, Julho de 1973.


quarta-feira, 17 de junho de 2020

O Modernismo no culto de Maria (Pe. Júlio Maria de Lombaerde)


Como! O Modernismo se terá envolvido verdadeiramente no culto da divina Mãe de Jesus?
Mostrei precedentemente a ligação estreita que existe entre a verdade e a Virgem Maria. Atacar uma é atacar a outra. O inferno varia seus ataques: ora ataca diretamente a Jesus Cristo, a fim de atingir indiretamente, mas, entretanto de um modo seguro à Virgem Maria; ora ataca diretamente a Maria a fim de destronar seu divino Filho.
O modernismo se distingue das heresias passadas no modo de atacar a doutrina, querendo tudo submeter ao critério da razão. É o produto direto do espírito que domina nosso século: o orgulho e a independência. Quer-se julgar, julgar tudo e tudo pesar; não com aquele respeito e veneração que caracterizavam nossos pais, mas com um espírito prevenido e com uma mão brutal.
Compreende-se que o culto da Virgem, dote das almas puras humildes e submissas, não recebe da parte desses críticos, senão um sorriso de compaixão e desdém.
Como não podem atacá-lo diretamente, pois é enraizado no evangelho e deriva de seus dogmas, os mais sagrados; acusam-no de exagerado, de delírio e entusiasmo exaltado, e pede-nos muito cortesmente para usar em nossa devoção de um proceder mais razoável e mais seguro.
Não é isto o modernismo com toda sua força, tão insinuante como traidora; tão deletéria como anticristã?
Ah! dizei-me se não tenho razão de soltar este grito de alarme; e de soltá-lo com toda indignação contra o inferno e seus agentes; e de compaixão por suas vítimas? Sim às armas! Às armas!
Vi levantar-se da sombra a besta do apocalipse... ela perseguia a mulher bendita, procurava aniquilá-la, mordê-la ao menos no calcanhar!
Mas não, não será assim. Nós estamos aqui; nós, seus padres, estamos de pé e a exemplo de nosso Pai Pio X, tão terno e enérgico, estamos prontos à luta, prontos a combater e a morrer.
Não somos nós a vanguarda da Virgem?
Compete-nos receber os primeiros golpes, ser os primeiros combatentes e mostrar à serpente infernal que os filhos da Virgem são seus inimigos natos; e que existe para sempre uma inimizade irreconciliável entre a raça da Imaculada e a raça do inferno.
Terna mãe, contai conosco. Vossa sentinela está desperta... e como a de um grande imperador, intimada a se render, exclama: A guarda morre mas não se rende!
Com o nosso chefe supremo, o infalível Pontífice romano, temos rejeitados, execrado e amaldiçoado o modernismo no seu princípio e em todas as aplicações. Sob qualquer forma que se manifeste, é um inimigo para se combater.
Introduz-se no culto de nossa Mãe, ia dizer, de nossa divina, encantadora e incomparável Mãe.
Ataquemo-lo, esmaguemo-lo! E seja tal o seu aniquilamento que nunca mais se atreva a tornar a levantar-se, nem a manchar com o seu lodo, a cândida e radiosa imagem da Virgem Imaculada.
Ah! A emoção apoderou-se demasiadamente de mim; oprime-me e impede-me quase de raciocinar com toda a calma que pede o exemplo.
Queiram perdoar-me; mas meu coração de filho revoltasse ao pensamento que se ataca minha mãe, e que, sob pretexto bem regular o seu culto, queriam encerrá-lo entre grades de ferro, feitas para lhe tirar todo o desenvolvimento e por consequência para matá-lo. Mas precisemos claramente os princípios do erro e ataquemo-los logo com toda a indignação que merecem.
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Pe. Júlio Maria de Lombaerde. Grito de alarme: ante um insulto infernal contra o culto da Virgem Imaculada, p. 15-17.
Pe. Júlio Maria de Lombaerde (1878-1944)

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O dia do Corpo de Deus no Mato-Virgem - um retrato do Brasil profundo.

Grande, extraordinário, sublime, maravilhoso é o poder da verdadeira religião no coração do homem!
Bendita seja! Pois só ela é capaz de tornar corações de feras, antropófagos em mansos, humildes e inofensivos cordeirinhos do rebanho de Jesus Cristo, apascentado atualmente pelo glorioso Pontífice Pio IX o Grande!
Vamos narrar com toda a simplicidade e naturalidade os prodígios de civilização que entre nossos indígenas praticam os Reverendos Missionários Apostólicos Capuchinhos com o poder da palavra divina e da fé católica.
Homens lá dessas cidades grandes e civilizadas, lá dessa faustosa corte do Rio de Janeiro, transportai-vos em espirito às florestas virgens do Rio Doce, e contemplareis o mais imponente espetáculo que homem algum há presenciado; a saber, vereis o Selvagem, degradado física, moral e intelectualmente pelo duplo apartamento do seu Criador e do centro da civilização primitiva, chamado de novo à casa de seu Deus, ao grêmio da grande família cristã pela voz apostólica dos ministros do Senhor!
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Era o dia 12 de Junho do corrente ano de 1873, dia soleníssimo do Santíssimo Corpo de Deus, Corpus Christi. No aldeamento central indígena da Imaculada Conceição, no Itambacury [nota: norte de Minas Gerais], 3ª circunscrição do Mucury, tudo está em movimento desde o arrebol do dia.
A pequena igreja do aldeamento construída de paus e coberta de cascas de arvores, que os indígenas chamam cavacos, acha-se soberbamente adornada de panos de algodão branco e encarnado, formando elegantes bambinelas e sanefas; lindamente alcatifada de flores agrestes e ornada de frondosos coqueiros, palmeiras, palmiteiros, e outras espécies.
A alguma distancia da igreja erigiram os Reverendos Missionários Capuchinhos um altar portátil, e entre este e a capela plantaram os indígenas duas alas de palmeiras.
Depois da missa cantada, saiu a procissão na ordem seguinte: na frente ia a Santa Cruz, carregada pelo Sr. Antônio dos Santos, varão religioso e ancião de 72 anos de idade, abastado fazendeiro senhor da rica fazenda da Fortuna; o qual veio de três léguas de distância, com seus filhos, parentes e vizinhos, fazendo picadas e abrindo caminho para chegar ao aldeamento, e de fato chegou non momento em que começava a procissão.
Iam depois os indígenas em duas alas ordenadamente com sininhos e campainhas nas mãos, de cujo toque gostam em extremo.

Saguia-se o celebrante Frei Seraphim de Gorizia com o Santíssimo Sacramento em Custódia, tendo a seu lado, servindo de diácono, Frei Ângelo de Sassoferrato, e rodeado de índios de diferentes tribos com velas acesas, campainhas, sininhos, e alguns com espingardas, que de quando em quando disparavam. Atrás do Santíssimo Sacramento seguia uma multidão de índias em muito boa ordem e compostura.

Saindo da igreja, a procissão caminhou pela rua de palmeiras até ao altar portátil, entoando os Reverendíssimos Missionários Capuchinhos o hino litúrgico: Tantum ergo Sacramentum etc., e alternadamente os indígenas em português o cântico: Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, respondendo as mulheres: Fruto do ventre sagrado da Virgem Puríssima Santa Maria.
Chegada que foi a procissão ao altar e pousada nele convenientemente a sagrada Custódia, foi incensado o Santíssimo Sacramento pelo celebrante Frei Seraphim, e depois o diácono Frei Ângelo cantou o Evangelho de S. João: In principio erat Verbum etc.; findo o qual o celebrante cantou as orações do costume, dando depois a benção solenemente com o Santíssimo Sacramento, conservando-se os indígenas e mais pessoas prostrados por terra de joelhos adorando a Santíssima Eucaristia com profundo respeito e veneração.
Por fim voltou a procissão pelo mesmo caminho e na mesma ordem à igreja, onde se recolheu.
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Eis aqui a narração singela e fiel do que se passou no dia 12 de Junho de 1873 no aldeamento da Imaculada Conceição do Itambacury.
Ora, quem, há um ano atrás, antes da vinda dos Reverendos Missionários Capuchinhos, que teve lugar em Setembro de 1872, havia de acreditar ou ver que hordas de selvagens antropófagos mais ferozes e sanguinários do que as próprias onças do mato acompanhariam este ano o Santíssimo Sacramento, o precioso Corpo de Cristo, em procissão tão majestosa e bem ordenada, como se fossem meninos civilizados, humildes e inofensivos?
Mas não é somente na docilidade para o culto que se pode avaliar a obediência e afeição dos indígenas, ainda a pouco bravios, para com os seus caridosos e desinteressados missionários.
Os Reverendos Missionários Capuchinhos abriram no aldeamento uma escola, à qual concorrem os filhos dos indígenas em número avultado e com toda a solicitude, pelo que promete os mais felizes resultados intelectuais, morais e sociais.
Oh! Preço inestimável do preciosíssimo sangue de nosso adorável Redentor! Oh! Prodígio da palavra divina! Oh! Exemplo edificante da abnegação apostólica dos verdadeiros ministros do Senhor! Oh! Poder inaudito da verdadeira caridade.

Um sertanejo do Rio Doce, setembro de 1873.

Sermão do Domingo de Pentecostes (Dom Tomás de Aquino OSB, 2020)


terça-feira, 9 de junho de 2020

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus e a impiedade moderna (Carta Pastoral de 1896)


A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, Deus e Homem verdadeiro, Mediador entre Deus os homens, por Ele próprio revelada ao mundo, e pela sua Igreja aprovada, promovida e recomendada com muitos extraordinários privilégios e indulgências, tem sido reconhecida pelos Pastores e pelo Supremo Pastor do Catolicismo como a devoção própria do nosso século.
(...)
A Igreja e a Sociedade, disse Pio IX, não tem a esperar senão no Coração de Jesus. Espalhai por toda a parte esta devoção, será ela a salvação do mundo. A cristandade por toda a terra a considera como a devoção católica por excelência.
(...)
Na manifestação de seu próprio Coração, Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, revelou a fonte, o órgão, e ao mesmo tempo o símbolo do Seu amor por nós; não daquele amor que tem como o Padre e o Espírito Santo e com que exultou os mistérios da Encarnação e da Redenção do mundo; mas daquele outro amor em que o seu Coração de Deus Homem arde e se abrasa para com todos os homens.
O que muitos séculos antes havia Jesus Cristo anunciado à sua fiel Santa Gertrudes realizou, há mais de duzentos anos, nas aparições à bem-aventurada Margarida Alacoque, a quem fez ver o Seu Amabilíssimo Coração inflamado de amor pelos homens e revelou o desejo de que fosse esse Coração honrado com um culto particular como o órgão, princípio imediato e símbolo daquele amor, na forma em que Ele mesmo lh’o apresentava.
Queria o terníssimo Salvador sob essas formas comoventes e atrativas se fazer mais vivamente presente a nós, e tocar o nosso coração para Lhe retribuirmos amor com amor: pois é certo que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, Verbo Encarnado, não é senão uma prática de amor para com o nosso Amabilíssimo Senhor Jesus Cristo, como ensina o Santo Doutor da Igreja, Afonso de Ligório.
(...)
Entremos nós também, Irmãos e Filhos muito amados, por aquela porta viva (S. Ambr. De Elia et jejunio, c. 4) aberta no Sagrado Costado do Salvador pendente da Cruz e, “uma vez abrigados no Amorosíssimo Coração de Jesus é bom que permaneçamos ali , nem consintamos força alguma nos separar dele– Quia semel venimus ad Cor dulcissimum Jesu et bonum est nos hic esse, ne sinamus nos facile avelli abe o -, do qual está escrito: aqueles que se separam de ti serão escritos na terra (desaparecerão como a terra) (S. Bernardo Serm., 3 de Passion)
Reparai como o mundo atual procura por toda a parte sacudir o jugo suave de realeza de Jesus Cristo, e com as suas más obras, os seus clubs, os seus congressos, os seus teatros, a sua imprensa, as suas fotografias, pornografias e pinturas, o seu luxo, as suas modas e o seu viver voluptuoso vai apregoando o mote da pérfida rebelião judaica – nolumus hunc regnare super nos (Evang. S. Luc. Cap. XIX, v. 14) – não queremos que Jesus Cristo reine sobre nós!
E crescendo dia a dia a sua soberba inimiga de Jesus – supervia eorum qui te oderunt ascendit, semper, (Psal, 73, v. 23) a impiedade sectária vai demolindo a família com a mancebia legal, conculcando a autoridade paterna, obrigando-a a abdicar do seu direito inalienável de educar a prole, privando-a da faculdade de distribuir o seu patrimônio, açulando a volúpia com o divórcio, pretenso separador do que Deus uniu. Desorganiza a escola, quebrando os laços que uniam os discípulos aos mestres pelo princípio de autoridade e pelo afeto do coração; desorganiza as oficinas acirrando o ódio dos operários contra os seus patrões, inutilizando assim a patronagem e a associação e degradando os trabalhadores a uma espécie de mercadorias sujeitas aos rigores de uma lei cruel e às oscilações do mercado; e degrada ainda mais as classes laboriosas abolindo os dias do Senhor para, entregando-as à cobiça de especuladores, desprezarem as suas necessidades morais e espirituais, e sujeitarem-nas ao trabalho como as bestas irracionais.

Em uma palavra, impondo a indiferença doutrinal e a mais completa separação da ordem natural, essa impiedade tem plantado o reino do pecado, que faz os povos miseráveismiseros autem facit populos peccatum (proverb. XIV, 34). Todo o seu empenho é suprimir Deus e os seus direitos, e para tanta insensatez não trepida diante dos meios ao seu alcance para arrancar do coração do povo a sua fé e as suas esperanças imortais, trocando-as por ilusórias e fúteis promessas dum bem-estar e satisfações terrestres, como se o coração do homem dotado de uma aspiração à felicidade sem termo e sem interpelação pudesse satisfazer-se com o pó de que foi tirado.
Toda essa luta, esses esforços todos dos ímpios coligados com o inferno, todos os males que deles se seguirem e seguirão, não escaparam às vistas de Jesus: antes formaram uma parte integrante do plano que veio realizar neste mundo.

Portanto não podia ser indiferente a esta realização: quis por isso não só preservar os seus filhos de tão grandes perigos, mas também fortalecê-los e fazê-los quais instrumentos ativos do estabelecimento e propagação do seu reino.
Mais ainda: a intenção de Jesus estendia-se aos seus próprios inimigos, que apesar de suas infidelidades e perfídias não deixam de ser seus filhos. Por eles do alto da Cruz havia rogado ao seu Pai – Pater, dimitte illis (S. Math., XI); e podendo esmaga-los debaixo de sua inexorável justiça, não quis triunfar pela força, mas preferiu com misericordioso amor atraí-los a si, alumiá-los e torna-los instrumentos de seu mesmo amor.
E para alcançar tão grande conquista manifestou as riquezas do seu amor, abriu o seu Coração afim que o homem pudesse achar n’Ele remédio para todos os seus males, e forças para resistir a tantas lutas. “Vinde a mim, dizia ele desde sua vida mortal, vinde todos a mim, Venit ad me omnes” (S. Lucas XXIII, 34).
E há dois séculos repete a todos: “Eis aquele Coração que tento tem amado aos homens, vinde a mim todos: o meu Coração está aberto para vos alumiar, fortalecer e consolar”.
“Cheguemo-nos, pois, para Ele e exultemos nele, porque acharemos o caminho, a verdade e a vida, elementos que constituem a verdadeira felicidade. Oh! Quanto é bom e suave habitar nesse Coração! Demos tudo que é do mundo, troquemos os pensamentos e os afetos de nossa alma e todo o nosso cuidado entreguemos ao Coração de Nosso Senhor Jesus Cristo para que só Ele reine em nossas almas” (S. Bernardo, Serm, 3 da Passion)
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Excerto da CARTA PASTORAL do Exm. e Rvm. Sr. Bispo de Niterói, Dom Francisco do Rego Maia, “sobre o Apostolado da Oração e o Mensageiro do Coração de Jesus”, 5 de julho de 1896. Festa do Preciosíssimo Sangue de N. S. Jesus Cristo.


terça-feira, 2 de junho de 2020

Os primeiros patriotas que teve a nossa terra (E. Vilhena de Moraes)


Se os franceses, com razão, ufanam-se de contar com um historiador da estatura de um Augustin Cochin, cujos estudos sobre as tramas das lojas maçônicas e das “sociedades de pensamento” ainda hoje não foram superados, podemos nós também manifestar o mesmo sentimento em relação ao notável Eugênio Vilhena de Moraes, autor do excerto abaixo transcrito, extraído de magistral conferência pronunciada no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, do qual era membro. Profundo conhecedor das origens católicas da nacionalidade, dedicou-se também Vilhena de Moraes ao estudo de suas figuras mais relevantes, entre as quais destacam-se D. Vital e o grande Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caixas (“Duque de Ferro”). Ao seu empenho e o de sua esposa se deve uma edição, em 1945, do “Livro da família: ou explicação dos deveres domésticos segundo as normas da razão e do Cristianismo”, do grande bispo paraense, amigo de D. Vital, D. Antônio de Macedo Costa. Ainda publicaremos outros excertos da conferência acima referida.

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“Que afeto ou que virtude – interrogava um grande bispo brasileiro – mais credor das bênçãos de uma religião fundada na caridade, que o amor da pátria, que os antigos chamavam Charitas patrii soli, o amor da sua independência, dos seus direitos, e da sua grandeza, sentimento irresistível, que o mesmo autor da natureza gravou no fundo dos nossos corações?
Os livros santos estão cheios de sublimes cânticos, e magnificas descrições das brilhantes solenidades com que a nação celebrava, e transmitia aos seus vindouros, a lembrança das memoráveis épocas da sua liberdade, assim como dos patrióticos suspiros, com que os cativos da Babilônia se compraziam até na recordação das mesmas pedras da sua infeliz pátria – ‘Quoniam placuerunt servis tuis lapides ejus, et terrae ejus miserabuntur’” (Dom Romualdo Seixas, arcebispo da Bahia, metropolitano do brasil – Pastoral constituindo santificado o dia dois de julho [26 de junho de 1830]).

Realmente. A própria Virgem Santíssima entoou no Magnificat um cântico de ação de graças ao Senhor pelos benefícios derramados sobre o povo de Israel. O Divino Salvador quis, em pessoa, pregar primeiramente aos seus compatriotas, sobre cuja desolação e ruína derramou lágrimas, entrando em Jerusalém, nas vésperas da sua Paixão. “Espargiu seu sangue, disse Bossuet, com um olhar particular para a sua nação, e oferecendo o grande sacrifício que devia ser a expiação de todo o Universo, quis que o amor da pátria tivesse também aí o seu lugar” (Bossuet – Politique tirée de l’Ecriture sainte, L. I, artigo VI.)

(...)

País descoberto, povoado, civilizado à sombra a cruz, não admira tenha tido o Brasil por primeiros patriotas os seus primeiros missionários apostólicos. Tão abandonada que até o nome perdera, adotou generosamente a Companhia de Jesus a nova terra, para criá-la ao seio, não como nutriz mercenária, mas com entranhas piedosíssimas de mãe. Ainda mais que o poder régio, soube ela educá-la, imprimindo-lhe ao caráter esse cunho indelével que representa até hoje a maior segurança da realização dos seus gloriosos destinos. Manoel da Nóbrega, Aspilcueta Navarro, José de Anchieta, eis aí entre outros muitos os nomes dos primeiros patriotas que teve a nossa terra.
Pouco importa não tivesse aberto os olhos sob as fulgurações do Cruzeiro o heroico missionário, braço forte dos Sás, a respeito do qual disse com razão o protestante Southey: “não há ninguém a quem deva o Brasil tantos e tão permanentes serviços”, ou aquele outro grande condutor de povos, a um tempo missionário, poeta, historiador, pedagogo e linguista, fundador de cidades, que consumiu cinquenta anos de existência a labutar sem tréguas, pela pátria que adotada.
Estremeciam-na todos, como própria, essa nova terra e levantavam clamores contra a desafeição geral dos colonos.
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Eugênio Vilhena de Moraes. O Patriotismo e o Clero no Brasil, Revista do IHGB, Tomo 99-Vol. 153, 1926, p. 113-114.

E. Vilhena de Moraes nasceu em Campanha, MG, em 2 de fevereiro de 1887, e faleceu no Rio de Janeiro, em 31 de outubro de 1981.