quinta-feira, 11 de junho de 2020

O dia do Corpo de Deus no Mato-Virgem - um retrato do Brasil profundo.

Grande, extraordinário, sublime, maravilhoso é o poder da verdadeira religião no coração do homem!
Bendita seja! Pois só ela é capaz de tornar corações de feras, antropófagos em mansos, humildes e inofensivos cordeirinhos do rebanho de Jesus Cristo, apascentado atualmente pelo glorioso Pontífice Pio IX o Grande!
Vamos narrar com toda a simplicidade e naturalidade os prodígios de civilização que entre nossos indígenas praticam os Reverendos Missionários Apostólicos Capuchinhos com o poder da palavra divina e da fé católica.
Homens lá dessas cidades grandes e civilizadas, lá dessa faustosa corte do Rio de Janeiro, transportai-vos em espirito às florestas virgens do Rio Doce, e contemplareis o mais imponente espetáculo que homem algum há presenciado; a saber, vereis o Selvagem, degradado física, moral e intelectualmente pelo duplo apartamento do seu Criador e do centro da civilização primitiva, chamado de novo à casa de seu Deus, ao grêmio da grande família cristã pela voz apostólica dos ministros do Senhor!
***
Era o dia 12 de Junho do corrente ano de 1873, dia soleníssimo do Santíssimo Corpo de Deus, Corpus Christi. No aldeamento central indígena da Imaculada Conceição, no Itambacury [nota: norte de Minas Gerais], 3ª circunscrição do Mucury, tudo está em movimento desde o arrebol do dia.
A pequena igreja do aldeamento construída de paus e coberta de cascas de arvores, que os indígenas chamam cavacos, acha-se soberbamente adornada de panos de algodão branco e encarnado, formando elegantes bambinelas e sanefas; lindamente alcatifada de flores agrestes e ornada de frondosos coqueiros, palmeiras, palmiteiros, e outras espécies.
A alguma distancia da igreja erigiram os Reverendos Missionários Capuchinhos um altar portátil, e entre este e a capela plantaram os indígenas duas alas de palmeiras.
Depois da missa cantada, saiu a procissão na ordem seguinte: na frente ia a Santa Cruz, carregada pelo Sr. Antônio dos Santos, varão religioso e ancião de 72 anos de idade, abastado fazendeiro senhor da rica fazenda da Fortuna; o qual veio de três léguas de distância, com seus filhos, parentes e vizinhos, fazendo picadas e abrindo caminho para chegar ao aldeamento, e de fato chegou non momento em que começava a procissão.
Iam depois os indígenas em duas alas ordenadamente com sininhos e campainhas nas mãos, de cujo toque gostam em extremo.

Saguia-se o celebrante Frei Seraphim de Gorizia com o Santíssimo Sacramento em Custódia, tendo a seu lado, servindo de diácono, Frei Ângelo de Sassoferrato, e rodeado de índios de diferentes tribos com velas acesas, campainhas, sininhos, e alguns com espingardas, que de quando em quando disparavam. Atrás do Santíssimo Sacramento seguia uma multidão de índias em muito boa ordem e compostura.

Saindo da igreja, a procissão caminhou pela rua de palmeiras até ao altar portátil, entoando os Reverendíssimos Missionários Capuchinhos o hino litúrgico: Tantum ergo Sacramentum etc., e alternadamente os indígenas em português o cântico: Bendito e louvado seja o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, respondendo as mulheres: Fruto do ventre sagrado da Virgem Puríssima Santa Maria.
Chegada que foi a procissão ao altar e pousada nele convenientemente a sagrada Custódia, foi incensado o Santíssimo Sacramento pelo celebrante Frei Seraphim, e depois o diácono Frei Ângelo cantou o Evangelho de S. João: In principio erat Verbum etc.; findo o qual o celebrante cantou as orações do costume, dando depois a benção solenemente com o Santíssimo Sacramento, conservando-se os indígenas e mais pessoas prostrados por terra de joelhos adorando a Santíssima Eucaristia com profundo respeito e veneração.
Por fim voltou a procissão pelo mesmo caminho e na mesma ordem à igreja, onde se recolheu.
***
Eis aqui a narração singela e fiel do que se passou no dia 12 de Junho de 1873 no aldeamento da Imaculada Conceição do Itambacury.
Ora, quem, há um ano atrás, antes da vinda dos Reverendos Missionários Capuchinhos, que teve lugar em Setembro de 1872, havia de acreditar ou ver que hordas de selvagens antropófagos mais ferozes e sanguinários do que as próprias onças do mato acompanhariam este ano o Santíssimo Sacramento, o precioso Corpo de Cristo, em procissão tão majestosa e bem ordenada, como se fossem meninos civilizados, humildes e inofensivos?
Mas não é somente na docilidade para o culto que se pode avaliar a obediência e afeição dos indígenas, ainda a pouco bravios, para com os seus caridosos e desinteressados missionários.
Os Reverendos Missionários Capuchinhos abriram no aldeamento uma escola, à qual concorrem os filhos dos indígenas em número avultado e com toda a solicitude, pelo que promete os mais felizes resultados intelectuais, morais e sociais.
Oh! Preço inestimável do preciosíssimo sangue de nosso adorável Redentor! Oh! Prodígio da palavra divina! Oh! Exemplo edificante da abnegação apostólica dos verdadeiros ministros do Senhor! Oh! Poder inaudito da verdadeira caridade.

Um sertanejo do Rio Doce, setembro de 1873.

Nenhum comentário:

Postar um comentário