quarta-feira, 26 de agosto de 2020

As rosas do Rosário


Fr. JOSÉ MARIA OLIVIER (1879).

I

Durante a idade média, os fiéis tinham estabelecido o costume de levar flores à igreja todos os dias solenes, que, benzidas pelos sacerdotes, as guardavam como uma recordação de cada festa. Este formoso costume se perdeu, como tantos outros, e unicamente nas aldeias existe ainda, e se oferecem flores ao Santíssimo Sacramento em suas festividades. O sacerdote faz tocar as flores à Custodia, e as devolve aos que as tem oferecido, como em memória da benção solene dispensada pelo Deus do tabernáculo a seus fiéis devotos.
Este perdido costume tinha, como tantos outros, sua razão misteriosa.
Em todos os povos as flores representam um símbolo de júbilo; parece que o mesmo Deus há inspirado aos homens a ideia de associá-las a todas as suas alegrias.
Na florida primavera, quando a terra celebra seu rejuvenescimento, as flores são o sinal patente da vitória obtida pela vida sobre a morte; e o mais completo triunfo da estação alegre, risonha, fecunda, sobre o estéril e sombrio inverno.
O homem nisto faz como Deus: semeia de flores o caminho em que se equilibram a juventude, a alegria, a força e a esperança. Canta seus prazeres e seus triunfos coroando-se de flores, e para demonstrar que a morte é apenas um transito, uma passagem para uma vida melhor, adorna também com flores seu sepulcro.

II

Porem a flor preferida por excelência para demonstrações de júbilo; a que levamos ás nossas igrejas dominicanas o benzemos nas grandes festas, é a rosa.
É, com efeito, a flor que representa melhor a juventude e retrata a esperança. Ao desaparecer as últimas neves, quando se aproxima a primavera, se veem à sombra das silveiras algumas desbotadas e melancólicas flores, com pouco perfume, débil amostra de uma vida incompleta ainda. Porém quando o céu e inteiramente azul, os raios do sol mais fortes, a brisa mais branda, a terra mais louça, a rosa aparece como o símbolo da juventude em toda a sua beleza.
É, pois, a rosa a flor que com preferência devemos escolher para associá-la às nossas festas religiosas; a estas festas que são sempre novas e como que o prelúdio dos gozos sem fim, eternos, a que aspiramos. Porém nós os filhos da Virgem do Rosário temos uma razão mais poderosa ainda para escolher a rosa como sinal de alegria, e é porque esta flor é a das virgens e a dos mártires.

III

É a flor das virgens. Efetivamente: nada no mundo representa tão bem a candura e a inocência como a rosa, adornada com a sua pureza imaculada, protegida por seus espinhos, e espargindo em torno seu doce perfume.
Bela sempre durante sua vida fugaz, o é ainda mais com sua aurora, quando velada pelas tenras folhas que parecem servir-lhe de berço, abre pundonorosa a corola virginal, deixando apenas penetrar, e como purificá-la, um só raio de sol. Mais tarde, virgem ainda, quando descobre com sentimento os atrativos de seu coração, a candura da infância e da adolescência, é o momento em que todos os olhares se fixam nela, a mão não se atreve a aproximar-se demasiado com o receio de ofende-la. É o instante em que se engrazam em sua corola as pérolas do orvalho menos puras e transparentes que suas pétalas: a luz se concentra nela fazendo-a brilhar com mais força e exalar mais suaves perfumes. Com sua casta alvura, ou com o ligeiro carmim que lhe dá seu nome, é e será sempre a flor das virgens, a flor com que se cinge a fronte das meninas em sua primeira comunhão, a que coroa o branco ataúde das donzelas, e a flor com que adornaríamos o berço dos infantes se eles não fossem tão puros como as mesmas rosas. A rosa se vê cercada de espinhos; claríssimo exemplo que nos ensina o grande cuidado que devemos ter em guardar nossa pureza. A mão que imprudente vá colher a casta flor, à impressão dos espinhos se retira ensanguentada. De igual modo devemos opor a essas mãos imprudentes, cujo contato entibia e desfolha as flores da alma, os inteligentes espinhos da vigilância e firmeza cristãs.
Tácito, falando das mulheres germanas, dizia que sua pureza as guardava como um valado de espinhos: circunscripta pudicitia ricunt. Assim devem viver as almas que Deus há querido que guardem a inocência. Se o áspide venenoso, ou o golpe indiscreto não opõe obstáculo para tocar a pobre flor, prestes se encontrará esta desfalecida, e para ela o desfalecimento é a morte. Nos admiramos algumas vezes da assombrosa rapidez com quo vemos cair do pedestal da inocência pessoas que antes admirávamos; porém ai! não devem estranhar estas súbitas quedas: a rosa não tinha espinhos !
Assim é muito fácil colhe-la, e por isso se acha bem depressa desfolhada.
IV

A rosa não é somente a flor das virgens, mas igualmente a dos mártires.
Segundo diz a Santa Escritura, a vida do homem é um continuo combate sobre a terra, no qual não se alcança o prêmio sem haver antes conseguido a vitória. É esta vitória, conquistada às vezes sobre o cadafalso, outras em um perseverante trabalho que tem por duração toda a vida; é sempre uma vitória alcançada à custa de inauditos sacrifícios, que nos faz comprimir de um modo doloroso nosso coração, contrariar nossa vontade e mortificar o espírito, tudo para obter o prêmio desejado. E as lágrimas que se derramam, são lágrimas de sangue que tingem as rosas da inocência não perdida ainda, ou antes reconquistada.
Quando a virgem Santa Cecília mostrou a seu esposo Valério as coroas que o céu lhes tinha preparadas, este viu umas grinaldas formadas de rosas brancas e encarnadas descer sobre suas cabeças. A Igreja pratica este exemplo coroando com rosas encarnadas as frontes de seus santos prediletos e de seus mártires, que representam o laurel da vitória. O laurel murcha o prestes se consome no fogo, porém a rosa conserva sempre um resto da sua cor e de seu perfume primitivos.
Do mesmo modo Deus concede a seus mártires esta segunda vida, se lhe são agradáveis as flores que se lhe oferecem, e estas flores, que representam a vida e a juventude, jamais murcharão, guardando eternamente purpura que as tinge do sangue por eles derramado, por amor a seu Salvador.

V

A rosa é a flor que mais convém a nossas festas, pois a maior parte delas estão destinadas a Maria, a Rainha das Virgens e dos Mártires. A Santa Escritura dá à Virgem um título que a Igreja o conserva na Litania e é o de Rosa Mística. Maria é a mais bela flor do Carmelo, cujas imemoráveis flores embalsamam o monte sagrado, subindo seus perfumes qual ligeira nuvem até o céu, e deixando absortos os olhos do Profeta. É também Maria a Rosa de Jericó, a maravilhosa flor que depois de morta torna a renascer com suas mais belas cores e perfumes, submergindo somente a haste na água cristalina.
Porém se a rosa é a principal flor de todas as festas de Maria, é em particular a mais adequada para as festas do Rosário. Efetivamente nenhuma outra poderia recordar-nos melhor os gozos tão puros, as acerbas dores e o triunfo gloriosíssimo da Santíssima Virgem. Quem mais pura que Maria, e onde melhor que nos mistérios de gozo podemos apropriar a rosa branca? Quem padeceu tanto como ela, e onde pôde convir melhor a sangrenta rosa que nos mistérios dolorosos? Quem ao presente tem mais gloria, e a quem senão à Maria oferecemos com todo o respeito e júbilo de nosso coração as enlaçadas flores dos mistérios gloriosos? É muito justo que levemos flores ao pé do altar, e que o sacerdote as abençoe.
Em nossas mãos são elas o patente testemunho do culto que tributamos à Maria, e guardadas em nossas casas serão o laço de união contraindo com tão boa Mãe, que nos cumulará de graças e bênçãos.

VI

Estas flores murcharão também como todas as da terra, mas sempre teremos presente o espirito de perseverança e de sacrifício que tão perfeitamente nos ensinaram, e o candor e a prudência com que se adornaram.
A fragilidade da rosa nos recordará aquelas almas agradáveis um dia aos olhos de Deus, quando estavam perfumadas pela candura da inocência, porém, que, sem saber como, arrojaram ao furor dos ventos as flores de sua coroa.
A só lembrança da flor do Rosário rogaremos com fervor à Maria se compadeça das almas, que hão perdido ou deixado enfraquecer sua força, e também por aquelas que ainda a conservam, afim de que Maria as mantenha em sua primeira inocência.
Nos dias de tribulação e angustia, quando vejamos murchar umas após outras as flores de alegria e de esperança com que se via adornada nossa juventude, pensaremos nas rosas que, despojadas pelos rigores do inverno, em chegando a primavera tornam a florescer se depõe a semente, e assim rogaremos à Maria derrame em nosso coração a seiva sobrenatural, esta graça vivificante que fará florescer nossa alma contristada pelos males da terra, porém que pela vitória alcançada nos será dado o gozar eternamente a gloria celestial.


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