Louis Veuillot (1813-1883)*
“Casei-me com a idade de 20 anos. Deus permitiu que encontrasse uma criatura honesta naquela em quem só procurei beleza, espírito e fortuna. Educada, como eu, na ignorância, era, entretanto, muito melhor do que eu.
Ela tinha o senso religioso que se desenvolveu quando ela se tornou
mãe; e que praticou depois do nascimento do seu primeiro filho. Quando penso em
tudo isso se me enche o coração de sentimentos de gratidão para com Deus,
sentimentos que sempre manifestarei parecendo-me entretanto, aquém da realidade.
Mas então não pensava assim, e, se minha mulher fosse como eu, creio não teria
pensado nem em batizar meus filhos.
Esses filhos cresceram. Os primeiros fizeram sua primeira comunhão,
sem que eu prestasse atenção. Deixara sua mãe governar o nosso lar, cheio de
confiança nela, e modificado, independente de minha vontade, pelo contato de
suas virtudes, que eu sentia e que não via.
Nasceu o último. Tinha ele mal gênio e sem grandes qualidades; se não
o amara menos que os outros, estava, entretanto, disposto a usar de mais
severidade com ele. A mãe me dizia: «Tenha paciência, ele mudará na época de sua
primeira comunhão». Essa mudança, em hora fixa, me parecia muito inverossímil.
Entretanto, o menino começou a seguir o catecismo, e eu vi que ele melhorava
sensivelmente e com muita rapidez. Prestei atenção ao fato. Via este espírito
se desenvolver, esse pequeno coração reagir, o caractere amenizar-se, tornar-se
dócil, respeitoso, afetuoso. Eu admirava esse trabalho que a razão não opera
nos homens; e o filho que menos amara se me tornava o mais caro.
Ao mesmo tempo fazia graves reflexões sobre uma tal maravilha.
Comecei a acompanhar as lições de catecismo.
Ouvindo-as, me lembrava dos cursos de filosofia e de moral; comparava
este ensino com a moral, cuja prática eu tinha observado no mundo, ah! sem que
eu mesmo me tenha podido preservar sempre dela. O problema do bem e do mal, que
eu não tinha encarado de frente pela impossibilidade de o resolver, se me
apresentava em toda a terrível evidência. Eu interrogava o menino; ele me dava
respostas que me esmagavam. Sentia que as objecções seriam descabidas e
culposas. Minha mulher observava e nada dizia; mas eu notava sua assiduidade na
oração. Minhas noites eram agitadas. Eu comparava
essas duas inocências à minha vida, esses dois amores ao meu; ou dizia: minha
mulher e meu filho amam em mim alguma coisa que não amei neles, nem em mim: é
minha alma.
Entramos na semana da
primeira comunhão. Já não era somente afeição que o menino me
inspirava, era um sentimento que eu não explicava, que me parecia estranho,
quase humilhante, e que se traduzia algumas vezes em uma espécie de irritação:
eu o respeitava. Ele me dominava. Não ousava manifestar em sua
presença certas ideias que o estado de luta em que eu estava contra mim mesmo
produzia algumas vezes em meu espírito. Não queria que elas lhe fizessem
impressão.
Faltavam apenas cinco ou seis dias. Uma manhã,
voltando da missa, o menino veio me procurar no meu gabinete, onde eu estava
só.
—«Pai, me disse ele, não irei ao altar no dia da minha primeira
comunhão sem vos ter pedido perdão de todas as faltas que tenho cometido, de
todos os pesares que vos tenho causado, e sem que me tenhais abençoado. Pensai
em todo o mal que tenho feito para me admoestar, afim de que não repita e para
me perdoar.
—«Meu filho,
respondi, um pai perdoa tudo, mesmo a um filho que não é bom; mas eu tenho a
satisfação de poder te dizer que neste momento nada tenho a te perdoar. Estou
contente contigo.
Continua a trabalhar, a amar o bom Deus, a ser fiel a teus deveres; tua mãe e
eu seremos muito felizes.
— «Sim! meu pai, o bom Deus que
vos ama tanto me dará forças, para que seja vossa consolação, como desejo. Orai
muito por mim, meu pai.
—Sim, meu caro filho.
Ele me fitou com os olhos húmidos, e passou os braços em torno do meu
pescoço.
Eu estava muito enternecido.
—Pai?, continuou ele.
—O que, meu caro filho?
—Pai, tenho uma coisa que vos pedir.
Eu via bem que ele queria me pedir alguma coisa, e o que ele queria me
pedir, eu o sabia bem! E, devo confessar, tinha receio! Tive a fraqueza de me
aproveitar de suas hesitações.
—Vai, lhe disse, estou muito
ocupado neste momento. Logo mais ou amanhã, me dirás o que desejas e, si tua
mãe aprovar, eu t'o darei.
O pobre pequeno, muito confuso, não teve coragem e, depois de me ter
abraçado ainda uma vez, se retirou desconcertado para o pequeno quarto, onde
dormia, entre meu gabinete e o quarto de sua mãe.
Eu tive remorsos do pesar que lhe tinha ocasionado, e principalmente
do movimento a que tinha obedecido.
Acompanhei este caro filho, na ponta dos pés, para consolá-lo se o
visse aflito. A porta estava entreaberta. Olhei sem que ele percebesse.
Estava de joelhos, defronte de uma pequena imagem da
Santa Virgem; orava com toda a efusão.
Ah! vos asseguro que nesse
momento senti toda impressão que pode produzir o aparecimento de um anjo.
Fui assentar-me junto à minha escrivaninha, com a cabeça nas mãos,
prestes a chorar. Fiquei assim alguns instantes. Quando abri os olhos, meu
filhinho estava diante de mim, com a fisionomia em que se notava temor,
resolução e amor.
—Meu caro pai, me disse ele, o que tenho que vos pedir não pode ser
adiado e minha mãe aprovará; é que no dia de minha primeira comunhão, me
acompanhem, vós e ela, à santa mesa. Não m'o recuseis, meu pai. Fazei isso pelo
bom Deus, que vos ama tanto.
Ah! Não procurei lutar mais contra esse Deus, que se dignava por essa
fôrma me chamar. Apertei, chorando, meu filho contra meu coração.
—Sim, sim -
lhe disse -, sim, meu filho, eu o farei. Quando tu quiseres, hoje mesmo tu me
levarás pela mão junto do teu confessor, e lhe dirás:
Eis aqui meu
pai...
***
*Nota: Louis Veuillot foi uma das figuras mais proeminentes do laicato francês de seu tempo. Entre outras obras de destaque, foi autor do magnífico “A ilusão liberal”, cuja leitura é indispensável para que se possa compreender o processo de defecção da fé que sucedeu ao Concílio Vaticano II
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