sexta-feira, 31 de julho de 2020

Os Apóstolos das Coisas (Canto dos Lavradores) - (NUNO DE MONTEMÓR)

(Ao Pequito Rebelo)

 

NÓS somos os Apóstolos das Coisas, e quando lhe pregamos o amor,

Elas entendem-nos, porque florescem.

O ar bom que se respira somos nós que o criamos,

Porque temos o poder de mudar os climas.

E as nuvens do céu obedecem-nos, como ovelhas mansas, nos prados.

 

Nós chamamos ao bom caminho, desviando-os do leito inútil,

Os rios maus e transviados, dirigindo-os no dever de regar os campos.

Nós damos de beber a cada folha um trago de luz, a cada raiz uma sede de água,

 

E choramos sobre as nossas culpas, se o verão é seco e o outono gelado...

 

Nós temperamos os gelos das madrugadas nos suores das nossas frontes.

 E cada arvore que plantamos é um ramo erguido a Deus,

Que, em paga das flores, nos dá os frutos.

 

E porque assim somos, tudo nos louva e engrandece.

Os passarinhos voam, em cruz, a abençoar-nos a sementeira,

As suas vozes apenas dizem: “lavrai, regai, criai...”.

E quando alegremente poisam na terra e nos ramos,

E a relha do arado faísca ao sol, alumiando o rego,

Debruçam-se, enternecidos, a ver as delicias que lhe semeamos.

 

Depois, quando as Coisas do campo nascem e crescem

Sorrimos-lhes, contentes, como a filhos no berço.

E se uma seara adoece, sobre as espigas mortas, por terra,

Vertemos lagrimas, a sofrer, como numa sepultura.

E para salvarmos as plantas da trovoada,

Quantas vezes damos a vida por elas!...

 

E o nosso bendito amor pela terra nunca descança,

“Porque as leiras virgens, sem fruto, são terras de perdição,

Onde a luz do céu morre sempre de tristeza,

 

Como a santa graça de Deus, no coração do ímpio.

E, por isso, deixamos ao filhos este preceito:

“Cavai a terra, fecundai-a, porque Deus andará triste. Enquanto na terra houver uma leira sem fruto.

 

E somos nós, que, a semear, embelezamos e salvamos a Vida!...

 

Venham até nós os sábios e as escolas, os filósofos e os artistas,

Porque somos pobrezinhos e sustentamos o mundo,

Não conhecemos as Letras e temos a Ciência da Vida,

Não aprendemos a Arte e somos os pintores da Terra!

 

As nossas mãos são duras e feias, mas são elas que trabalham a luz do sol,

Donde tecem a seda das rosas e o oiro das espigas.

São toscas as nossas falas, mas é entre nós que os passarinhos gostam de cantar,

É bravio o nosso gênio e mudamos o toiro bravo em cordeiro.

É rude o nosso convívio e Deus anda a toda a hora conosco.

 

Os nossos pés são pesados de abrirem as veredas

Que levam a semente onde as estradas não chegam;

E estas veredas brancas dos campos, cintilando ao sol,

São os caminhos dos Apóstolos da Natureza.

 

E estes Apóstolos, a quem Deus sorri, somos nós,

Que logo de pequeninos, mal erguendo a enxada,

Recebemos a graça e o poder de criar as Coisas.

E pela vida fora, ao começar os trabalhos de cada dia,

Traçamos, da fronte ao peito, a cruz de uma oração.

 

Para que todas as Coisas nasçam e se criem,

Em nome do Padre, do filho e do Espirito Santo.

 

E porque assim somos, gloriosos e simples,

Bendito seja Deus que nos fez lavradores,

Porque muito nos quere.

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 NUNO DE MONTEMÓR, do livro Amor de Deus e da Terraextraído da revista Ordem Nova, Ano 1, Volume 1, LISBOA 1926, pp. 23-25.



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