domingo, 24 de maio de 2020

A vida é a vigília da eternidade - Mons. Gaume (1802-1879)



I. DIAS DA SEMANA NO PONTO DE VISTA DA FÉ - o domingo é a primeira festa do Cristianismo. Acabamos de explicar por miúdo o ofício divino e o augusto Sacrifício com que a Igreja quer que seja santificado. Em certo sentido, os outros dias da semana são também festas. O universo é um templo; o homem é um sacerdote; a sua vida deve ser uma festa continua: tal é o pensamento dos Padres da Igreja.

“Dizei-me, perguntava Orígenes aos Cristãos do seu temp0, vós que não vindes à igreja senão nos dias solenes, os outros dias não são também dias de festa? Não são dias do Senhor, domingos? É próprio dos judeus o distinguir os dias. Por isso o Senhor lhes declarou que tinha aversão às suas calendas e aos seus dias de descanso. Os Cristãos, pelo contrário, consideram todos os dias como dias do Senhor, e como o mesmo dia de Páscoa, porque todos os dias o Cordeiro celeste se imola por eles e todos os dias o comem. Se o Sacrifício se fazia, segundo a lei de Moisés, ao pôr do sol, é porque a vida presente é como um dia na sua declinação, uma noite que deve ser seguida do dia do sol de justiça, ao nascer do qual havemos de entrar num oceano de alegria e numa festa eterna (Homil. X in Gen.).

Duas coisas resultam destas magnificas palavras:
1º que a Religião completada por Nosso Senhor desenvolveu toda a lei antiga, de tal sorte que, se os judeus tinham certos dias da festa, era uma sombra do que devia suceder sob o Evangelho, quando todos os dias não formassem mais que uma festa, em que os homens se abstivessem de tudo o que pode ofender a Deus;
2º que as festas e a mesma vida inteira não são mais que um tirocínio da festa do Céu; que o tempo é a vigília da eternidade, pois que não é senão em vista da eternidade que é dada a vida ao homem, o tempo a0 gênero humano, e que podemos sempre alimentar-nos da carne ou da palavra do Verbo encarnado, da qual a gente se alimenta também no Céu.
Insistindo nesta bela ideia de que a vida não é mais que uma longa festa em que devemos ser santos e piedosos como nas solenidades particulares, continua Orígenes nestes termos:

 “O Cristão  que tem inteligência da sua Religião, está persuadido de que cada dia é para ele um dia de domingo, um dia do Senhor ao qual unicamente liga o coração e os pensamentos; de que cada dia é para ele uma sexta-feira, e até uma sexta-feira santa, porque doma as suas paixões e recebe na sua carne as impressões da cruz de Jesus Cristo; de que cada dia é para ele um dia de Páscoa, porque continua incessantemente a separar-se deste mundo de corrupção e a passar ao mundo invisível e incorruptível, alimentando-se da palavra e da carne do Verbo humanado; finalmente, de que cada dia é para ele um dia de Pentecostes, porque ressuscitou em espirito com Jesus Cristo, elevou-se com ele até ao Céu, até ao trono do Pai, onde está assentado com Jesus Cristo e em Jesus Cristo, pelo qual recebe a plenitude do Espirito Santo” (Contr. Cels., 1. VIII).

Todos os dias do ano são, pois, dias santos, dias de festa.

“Mas, acrescenta o mesmo Padre, como há muitos cristãos que não querem ou não podem resolver-se a passar toda a vida como um só dia de festa, foi preciso, para acomodar-se à sua fraqueza, determinar festas particulares. Na sua maternal solicitude, as estabeleceu a Egreja para que os mais dissipados e os mais languidos pudessem adquirir nelas novo vigor, desembaraçando-se, ao menos por um pouco de tempo, dos negócios deste mundo. Todavia não são essas, segundo a expressão de S. Paulo, senão partes de um dia de festa, dessa festa contínua que os justos celebram toda a sua vida e que os bem-aventurados hão de celebrar na eternidade” (2 - Id., 1. VIII; Hieron., in Epist. ad Galat., c. IV.).

Tal é a sublime ideia que o Cristianismo, pela boca dos seus doutores, nos dá do mundo e do tempo. O mundo é um templo, a vida é uma festa, mas uma festa em que o homem decaído procura reabilitar-se. Para caracterizarem a vida do Cristão sob o Evangelho, acrescentam:

“É uma verdade igualmente importante e incontestável que o culto religioso da Divindade teve mais extensão e liberdade, e se deixou limitar menos a tempos, a anos, a semanas, a dias, a lugares, a templos e a altares particulares no estado de inocência e nos séculos que o seguiram de perto que nos subsequentes. Sabe-se por quantas leis e prescrições era embaraçado sob a lei mosaica. A Igreja ocupa o meio termo entre a sinagoga e o céu ou o estado de inocência. Sob o Evangelho estamos, pois, como em um estado intermediário, em que se recobra a primitiva inocência, mas em que não se recobra inteiramente. Ainda mais, esperamos na vida futura uma liberdade mui outra que a do primitivo estado, porque nela será Deus por si só o nosso templo, e nós o seremos seu. Entraremos na sua alegria e no seu descanso, dos quais não terão sido senão sombras todas as festas do estado de inocência, da sinagoga e da própria Igreja. Nas festas deste mundo, traça Deus em nós, pela justificaçã0, a imagem da nossa primitiva pureza, bem c0mo da liberdade e felicidade em que criara o homem. Desse modo põe em nós alguns traços da santidade e liberdade perfeitas que nos prepara no céu. Os justos, pois, participam agora do primeiro e último estado da santa liberdade dos filhos de Deus” (Clem. Alexand., Strom., 1, VII, n. 512.).

Mas como havemos de fazer da nossa vida terrestre uma festa continua? Como celebrá-la dignamente? É preciso, segundo o pensamento dos santos Padres, lembrar-nos de que toda a duração dos séculos não é mais que um dia de festa cujos momentos são todos consagrados a Deus; de que, vindo tudo d'Ele, tudo lhe pertence, tudo deve voltar a Ele; de que, em qualquer parte que estejamos, estamos no seu templo, caminhamos na sua presença, e vivemos n'Ele e d'Ele; de que, quer bebamos, quer comamos, quer façamos outra ação, devemos referir-lha e fazer-lhe o sacrifício dela; de que o amor da verdade e da justiça, que é o amor do mesmo Deus, deve morar na nossa alma assim na alegria como na tristeza, assim na felicidade como na nudez; e de que esta divina chama deve arder continuamente n0 nosso coração, como em um altar mais puro e mais precioso que os altares mais santos e mais magníficos da terra.

A celebração desta festa perpetua que compõe a vida dos justos, e que deverá compor a de todos os homens, não se opõem nem o trabalho manual, nem os empregos mais baixos, nem as obras servis; pois o justo animado da caridade é livre, livre pela liberdade dos filhos de Deus; e nenhuma das suas obras é servil. Quer pode a sua vinha, quer cultive os seus campos ou navegue no mar, não cessa de celebrar essa festa continua dos justos, pois que nã0 cessa, entre essas ocupações, de amar seu Pai celeste e de cantar 0s seus louvores (Clem. Alexand, Strom., 1. VII, n 512.). Se todas essas coisas são vedadas nos dias de festa particulares, é para que os cuidados temporais não sejam obstáculo à meditação das coisas divinas e à oração.

A vida do homem neste mundo é pois uma festa, porém uma festa que ele deve celebrar como o guerreiro no meio dos combates, alcançando continuas vitórias; como o desterrado, caminhando continuamente para a pátria; como um rei caído do trono, procurando com contínuos esforços tornar a subir a ele. Para o Cristão, isto é, para o homem que compreende o seu destino, é pois a festa da vida, se é licito dizê-lo, uma festa paciente e laboriosa. Mas animo, ó homem! Guerreiro desterrado, rei decaído, animo! Para ti virão a seu tempo as palmas, a pátria e a coroa.

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Mons. Gaume. Catecismo da perseverança, tomo ix, Porto: 1868, pp. 261-264.



Jean Joseph Gaume (1802 - 1879)

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