quinta-feira, 14 de maio de 2020

Tarquínio de Souza: um amigo de Dom Vital (Câmara Cascudo)


“Na hora em que dom Vital foi preso, Tarquínio [Tarquínio Braulio de Souza Amarantho, 1829-1894] rompeu com o ministério. A tempestade não o amedrontou. Ficou entre os raros fieis ao grande Bispo Mártir. O conselheiro Tarquínio de Souza ficou ao lado dos que não negaram as promessas do batismo. Zacarias de Góes e Vasconcellos, Muritiba, Pirapama, Candido Mendes de Almeida, Ferreira Vianna, no Senado, Leandro Bezerra de Menezes, paladino invencido, Diogo de Vasconcellos, na Câmara, foram as vozes que ergueram. Os demais simpáticos davam “apartes”. Somente. Derredor havia a solidariedade maçônica dos dois “vales”, coligados sob a égide do Presidente do Conselho de Ministros, força inicial propulsora a quem, por educação e mentalidade coimbrã, não foi estranho nem indiferente do apoio imperial.
A 27 de fevereiro de 1873 Tarquínio, deputado “ministerial”, assim chamados os que apoiavam o Gabinete, abre fogo, lealmente. Dom Vital reagira ante a maré insultuosa que crescia, bramindo. A Irmandade fora interditada. O jornal católico, “A União”, caíra depredado. O Conselho de Estado reunira-se e positivara o erro inicial, o escorrego que o levaria ao fundo do pêgo: - tomara conhecimento do recurso interposto pela Irmandade relapsa de seus deveres espirituais. Tarquínio fala em linha reta, clara, segura, definitivamente:

- Senhor Presidente, V. Excia e a casa me permitirão que eu, diocese de Pernambuco, filho espiritual do Bispo que acaba de ser tão acremente censurado...
Sr. SILVEIRA MARTINS: - Faça-lhe muito bom proveito!
TARQUINIO DE SOUZA: - Tenho muita honra em declará-lo.

Daí em diante fala sempre argumentando todos os aspectos da questão. A criminosa doutrina do placet, a cultura regalista ciosa e estreita que presidia o Conselho de Estado, os direitos eclesiásticos, os deveres católicos ante os direitos da cidadania, a ação dos jesuítas foram magnificamente fixados. Sua prática de professor salva-o da confusão pastosa que se encontra no grande Candido Mendes. Tarquínio é sempre nítido, modesto, implacavelmente sereno.
Não é mister recordar-lhe a doutrina, o segredo dos golpes revidados com felicidade. Convém trazer para os nossos dias de penumbra aquela voz distante e máscula, vibrando, heroica e simples, numa afirmativa retilínea de Fé.
Assim falava um católico no meio dos deputados maçons e amarrados aos compromissos dos chefes e das trolhas simbólicas. Os trechos, citados sem maior escolha, dizem o nível da coragem impassível, polida, generosa, concisa, mas viva, continua e terebrante:

Não falo dos indivíduos, mas da sociedade. Sou católico de Roma; o meu chefe nos interesses temporais está no Rio de Janeiro, é o governo imperial; em matéria de fé, porém, o meu chefe está em Roma, é o Sumo Pontífice.
CRUZ MACHADO: - De acordo com a Constituição.
TARQUINIO DE SOUSA – Não aceito limitações; separar-me-ia da própria constituição se ela viesse ferir as minhas crenças religiosas.
ARAUJO GOES FILHO – Que remédio senão aceitar.
TARQUINIO – Seria desterrado, paciência; mas não aceitaria limitações, porque a minha fé é que me há de salvar, e não a constituição.

No discurso de 15 de julho de 1873, uma profissão de fé que orgulhará toda sua existência:

- Pois, senhores, o que é ser católico apostólico romano? O que é esta religião que todos nós professamos e juramos manter? Esta religião supõe uma igreja, uma hierarquia, divinamente instituída, cujo chefe é o Sumo Pontífice, o qual tem, como já disse, não só o primado da honra, mas também o de jurisdição em toda a igreja; e se para acreditarmos o que o cabeça da igreja no ensina, se para praticarmos o que ele nos manda, tivéssemos necessidade de esperar o consentimento, o beneplácito de Cesar, a nossa religião deixaria de ser a católica, apostólica, romana, a religião de Jesus Cristo, para ser a religião de Cesar.
EUNAPIO DEIRO: - A consequência é que a igreja católica é incompatível com a civilização. Está fazendo um mau serviço à religião.
TARQUÍNIO: - Senhores, declaro em alto e bom som, que, depois de 19 séculos de cristianismo, não voltarei mais aos tempos do paganismo, não hei de ser quem vá curvar-se e render culto ao Divos Cesar, Imperator et Summus Pontifex.
LEANDRO BEZERRA: - Muito bem!

A prisão dos Bispos traz o rompimento de Tarquínio com o gabinete Sete de Março. Mais alta e nobre sua voz clama, a 1 de agosto de 1874, na presença de Duarte de Azevedo, Ministro da Justiça:

- Vingança impotente, porque o governo mandou levantar os interditos das irmandades, e não obstante eles subsistem; vingança impotente, repito, porque nos delitos de fato permanentes, desde que a lei que os pune não tem força bastante para fazer cessar o fato, a própria lei se declara impotente e a lei, que é impotente, não é lei, mas arbítrio e paixão.
... o Bispo de Pernambuco não podia tolerar que os mesmos indivíduos andassem ao mesmo tempo com a trolha de pedreiro livre e o balandrau das irmandades católicas.
O governo pode mandar processar e prender, pode aumentar o número das vítimas; mas não esqueça que o Sr. Dom Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira é quem efetivamente ainda governa a diocese de Olinda.
... o supremo tribunal sacrificou a justiça, violou os mais elementares princípios do direito, cometeu um verdadeiro atentado condenando a dois Bispos.
Vergonha eterna nos anais judiciários do Brasil!
A expulsão do Bispo comprometeria somente o governo; a condenação no art. 96 desonrou o supremo tribunal e comprometeu também o poder moderador.

É neste discurso o ataque fulminante ao regalismo pombalino que se entronizara no Conselho de Estado e constituía praxe nos processados ministeriais. Nenhuma atitude foi tomada mais conscientemente e no momento mais áspero e tremendo.

Senhores, tem-se procurado contrapor a posição de cidadão brasileiro à de católico apostólico romano, tem-se dito que, desde que as leis do Império forem opostas às leis da Igreja, devemos obedecer àquelas em prejuízo destas.
Declaro solenemente que não estou por essa doutrina.
JOÃO MENDES E OUTROS SENHORES: - Muito bem!
TARQUÍNIO DE SOUZA: - Sou brasileiro pelo meu nascimento, amo, como quem mais amar, a minha pátria, e estou disposto a fazer por ela todos os sacrifícios que de mim se exigirem, assim como estou certo de lhe haver prestado aqueles serviços que estão nas minhas limitadas forças.
DIOGO DE VASCONCELLOS: - Tem prestado muito bons serviços.
TARQUÍNIO DE SOUZA: - Sou, porém, católico pelo meu batismo, felizmente não conheço antinomia alguma entre as leis do meu país e as da Igreja a que pertenço.
Declaro, porém, à Câmara que, se infelizmente houvesse leis no Brasil que fossem de encontro às leis da Igreja, neste conflito, antes de tudo, obedeceria às leis da Igreja, cumpriria as promessas do meu batismo, porque entre Deus e o Homem, entre a pátria terrestre e a pátria celeste, a que eu aspiro, a escolha não pode difícil a quem, como eu, firmemente crê na vida eterna.

Rio Branco mandara a Missão Penedo impor a Pio IX a humilhação de desautorizar os dois prelados rebeldes. Tarquínio num discurso magnifico, expõe a deslealdade, a duplicidade, os antecedentes da questão misteriosa. Os Bispos estavam condenados por antecipação, de plano, castigo prévio ao desenvolvimento da independência espiritual que se avultava, libertada dos “avisos” ministeriais. O professor de direito explica, aos políticos, as raias dos dois poderes, a extensão dos dois planos onde o homem atuará e poderá ter chefes. É, naquele triste 18 de agosto de 1874, uma antevisão radiosa da IMMORTALE DEI, de Leão XIII, que sairia vinte e cinco anos depois. Despede-se da tribuna numa peroração teatral e emocionante: -

É por isso, Sr. Presidente, que estou disposto, enquanto tiver assento nesta casa, queira ou não o governo, a erguer minha voz sempre que me seja possível, para estigmatizar os erros e desatinos do ministério, para defender, nos limites de minhas forças, a fé e a liberdade dos católicos do Brasil.
Não quero em tempo algum, quando se tratar desta questão, e se rememorarem as tristes cenas que nela se tem dado, ter razão de dizer: - voe mihi quia tacui: ai de mim, porque me calei quando podia e devia falar.

Vamos nos aproximando do centenário do nascimento de dom Frei Vital. Tudo ressuscitará para uma palavra de julgamento e de estudo. Juízes e acusadores, saídos do seio da morte, apeados dos altares da adoração oficial e pragmática, serão interrogados em suas palavras e atos sem a sugestão de seus perdidos cargos nem as promessas de suas recompensas. A figura hirta e séria do capuchinho, arrastando a seda de seu manto episcopal entre os soldados que o foram prender no Palácio da Soledade, maior e mais alta se desdobrará. O “Homem de Espanto”, a vertical desnorteadora na cômoda horizontalidade da tolerância da época, virá até nós, inclinar a moça cabeça onde a mancha lilás do solidéu, é um leve traço aristocrático dessa dinastia de dois anos de mando pacífico sobre as almas, e perguntar-nos-á se nos esquecemos de sua vida e daqueles que lhe foram, como o conselheiro Tarquínio de Souza, fiéis até o fim. E nos céus melancólicos passará novamente o encanto daquela atitude inesquecível e maravilhosa. Recordaremos o Restaurador da Fé, Dom Vital, Mártir e Apóstolo, que atravessou a história social do Brasil com o brilho de um raio a duração de um relâmpago.

***
Luís da CÂMARA CASCUDO. Um amigo de Dom Vital (1936).
*Câmara Cascudo (1898-1986) foi um dos grandes expoentes da cultura brasileira no século passado. Folclorista de renome, assim como seu amigo Gustavo Barroso (1888-1959), deixou extensa obra sobre assuntos variados.  

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